sexta-feira, 20 de abril de 2007

Não me lembro da minha cara

Não me lembro da minha cara, mas há um nome. Mas Tu, Senhor, estavas lá quando me deram o meu nome. Foi na Tua casa que o meu nome foi pronunciado pela primeira vez, somente para que Tu o ouvisses.
Nasci mulher, no ano de 1894, numa pequenina aldeia do Teu vasto reino.
Agora sou nada, mas enquanto fui mulher trouxe gravadas, no mais fundo de mim, as palavras com que a condenaste a ela: «Aumentarei os sofrimentos da tua gravidez, os teus filhos hão-de nascer no meio de dores»; mas Tu, Senhor, foste mais longe com o Teu castigo: «Procurarás com paixão a quem serás sujeita» (Génesis 3, 16). Assim deve ter sido para ela, assim foi para mim: Eva também eu.
Lembras-Te de mim, Senhor?
Com quinze anos deixei os montes que percorri na infância e parti para o outro lado do mundo. E como a água do mar, que vi pela primeira vez, também eram salgadas as minhas lágrimas. Lembras-Te, Senhor, por quem eu chorava?
Foi o meu primeiro amor, tão puro e inocente como o primeiro amor deve ser.
Zé António, Zé António – quantas vezes repeti, baixinho e só para mim, o teu nome. Em horas de alegria foi cântico, mas no desespero da partida foi lamento. Outras vezes, tarde na noite, silenciei o choro e acarinhei-me somente com o ressoar do teu nome nas células do meu corpo.
Era a partida necessária, Senhor?
Ainda me lembro de ti, meu amor para sempre amado, correndo ao lado do carro do Piloto, enquanto eu me debruçava na janela e tentava alcançar-te. E lembro-me do desespero com que gritaste o meu nome.
Meu amor para sempre amado, eternos são os teus olhos verdes, verdes. Ou os teus cabelos negros, longos e encaracolados. Tinhas um rosto bonito, com lábios sensuais. E o teu corpo era jovem e forte. Eu gostava quando tu me apertavas nos teus braços, com força. Parecia-me, nessas alturas, que eu passava a fazer parte de ti, que era um contigo. E, de verdade, eu e tu éramos um só.
Que distantes estão esses tempos. Os meus cabelos brancos e as rugas do meu rosto contam, agora, outras histórias. É tarde. Será, talvez, quase manhã. Não quero pensar mais. Vou rezar, outra vez, as orações da noite.
Foi o destino, Senhor?
Naquele dia eu levei os bois para o lameiro bem mais tarde. Descia o monte e ainda não o via, mas a voz dele, no eco prolongado do meu nome, já me acompanhava. E, de repente, os braços dele estavam novamente à minha volta. O meu nome ainda era repetido, mas a voz dele tornara-se profunda e ele murmurava ao meu ouvido. Oh! Como foram suaves as mãos dele, como foram sempre suaves.
Mas Tu, Senhor, fizeste o pai ter vontade de partir e foi toda a família para além mar. Lembras-Te, Senhor?
Chorei no colo da mãe até não ter mais lágrimas, mas isso foi apenas o princípio. Ainda antes do embarque senti o meu corpo tornar-se estranho, chegada ao alto mar passei pelo inferno. Não me deste descanso nem de noite, nem de dia. Durante mais de um mês enfraqueceste o meu corpo, enquanto a mãe renovava, a cada instante, as preces por mim. Era o destino, Senhor?
Mais tarde, já próximo da costa da Baía, fizeste-nos quase naufragar numa tempestade violenta. E deixaste que fossemos todos encerrados no porão do navio. Lembras-Te, Senhor? O chão movia-se e o meu corpo era constantemente arrastado, tal como os outros todos. Não nos davas um instante de paz. Na minha barriga enterravam- -se cotovelos e, às vezes, quase sufocava. Até que desfaleci e sangrei tudo o que havia para sangrar. Depois, Senhor, passei por uns dias de dores e fraqueza redobrada, mas o meu corpo era jovem, conseguiu recuperar. Quando tudo acabou a mãe disse-me que Tu, Senhor, me tinhas salvo de um destino pior do que a morte. Lembras-Te, Senhor? Lembras-Te das noite em que chorei inconsolável?
É quase manhã, sei que é quase manhã.
Não, não tenho um coração agradecido. Mas Tu, Senhor, soubeste sempre tirar-me os meus sonhos, quando eu ainda queria sonhá-los. Agora já tudo isso acabou, bem sei. E tudo teria acabado, ainda que tivesse sido de outra maneira. Mas, Senhor, se tivesse sido de outra maneira, talvez o meu coração estivesse agradecido. Assim, nas minhas noites, tudo o que sei é que nunca quis o destino que me deste. Mas só a Tua vontade se realiza, Senhor. E, de qualquer modo, já tudo acabou. Já tudo acabou.
Que o sono se acerque de mim.
Porque não durmo eu? Só mais um bocadinho, até que o sol volte a aparecer.
Quero esquecer tudo... o que foi e o que poderia ter sido. Pode ser que ainda tenha um destino à minha frente, mas só Tu, Senhor, sabes se assim é. Vou morrer um destes dias. E não sei se isso é bom ou mau. Pelo menos, terei o silêncio. E a libertação deste corpo cansado, que agora é feito de pedra.
São Paulo era a cidade. Eu ficava aterrorizada no meio daquela imensidão de casas, de ruas para todos os lados, de pessoas. Mais pessoas do que eu, alguma vez, imaginei ver juntas.
No meu primeiro dia em São Paulo vesti a roupa que a mãe mandou fazer para mim, antes de partirmos. Ainda me lembro da saia de lã cardada e do xaile de barras de seda. É claro que não suportei o calor. A filha da dona Lucinda riu-se de mim e eu recusei as roupas dela, frescas e bonitas. Vesti outro dos meus trajes escuros, que era quase igualmente insuportável. Donde eu tinha vindo, os homens usavam ceroulas o ano inteiro, dizia-se que o que tirava o frio também tirava o calor. Talvez, mesmo assim eu ansiava por roupas minhas, cheias de folhos esvoaçantes e ligeiras.
Quase logo comecei a trabalhar como criada, embora eu não estivesse habituada a nada daquilo. Tinha que usar um espartilho, que apertava o meu corpo e deixava marcas profundas, que nem sempre desapareciam durante a noite. A farda era bonita, eu gostava muito do aventalzinho, mas a touca desagradava-me.
Tu, Senhor, sabes que eu nunca recusei o trabalho. Mas, para mim, só tinha uma tarde de domingo, cada duas semanas. E passava todo esse tempo dentro de casa. Isso, Senhor, é que era terrível. Não havia montanhas, nem rios, nem céu azul, nem sol, nem chuva, nem neve, nem vento nos cabelos. Não levava os animais para o pasto nem lhes dava de comer, não brincava com os cães nem com os gatos. E não tinha o Zé António. Estava sozinha, mais só do que alguma vez tinha estado. E, cada vez mais fortemente, sentia que Tu me tinhas abandonado. Gastei cera nas Tuas igrejas, rezei logo pela manhã e durante todas as horas do meu trabalho. Chamei-Te até não ter voz. Mas Tu, Senhor, nunca me respondeste.
Na minha primeira folga percorri as ruas com desespero e perdi-me, quase imediatamente. Só Tu, Senhor, sabias o caminho para a casa dos meus pais. Lembras-Te, Senhor, de todas as vezes em que perguntei por aquela rua? E cheguei lá, ainda a tarde só ia a meio. Mas, Senhor, quem seria capaz de se lembrar da casa? Eram todas iguais. Chorei cada minuto que perdia, cada passo repetido, cada casa que não distinguia. E foi assim até que as luzes da cidade se acenderam e o meu tempo acabou. Fiz o caminho de volta perguntando, sempre perguntando. Mesmo assim cheguei tarde. Lembras-Te dela, tão aborrecida que metia medo? Como não sabia qual era a casa? Nas casas havia números. Números, Senhor. Mas o que eram números? Só Tu, Senhor, sabias tudo. E porque sabias tudo, soubeste também do terror que me acompanhou noite e dia na quinzena que se seguiu. Soubeste, Senhor, das noites em que não dormi, dominada pelo medo de nunca mais encontrar a casa dos meus pais, a minha família. E o meu irmão e as minhas duas irmãzinhas, todos mais novos do que eu, assim como o pai e a mãe, pareciam já só pertencer a memórias mais ou menos longínquas. Senti-me abandonada, sozinha num país que eu não queria, com um mar imenso a separar-me da minha terra. Tinha quinze anos, Senhor.
Estou deitada de costas, esforço-me por não me mexer. O meu corpo está deformado, mas fui-me habituando e continuo a ser eu. O dia já tarda a despontar. Que dia é hoje? Números, novamente. Não é, Senhor? Lembras-Te, Senhor, daquela vez em que o policia se riu de mim? Eu perguntei por um número que estava mesmo à minha frente. Chamou-me um nome estranho, que eu nunca ouvira antes. Queria dizer que eu não sabia ler nem escrever. Mas só soube que era assim quando aprendi a ler e a escrever. Lembras-Te, Senhor? Pedi-lhe para me deixar ter aulas à noite e ela limitou-se a sorrir. E nunca cheguei a saber se, de facto, só havia homens nas escolas nocturnas. Mas aprendi, usei todos os cadernos do Jacinto e aprendi. Queria saber mais, sempre mais. Nem o sono nem o cansaço conseguiam vencer-me - eu queria aprender, queria aprender tudo o que houvesse para aprender. E só Tu, Senhor, me fizeste parar. Números, Senhor? Números. Contava tudo o que havia para contar: pratos, talheres, cadeiras, janelas. Mais tarde, contei as pessoas que vi morrer. Lembras-Te, Senhor? Chamavam-lhe a Bailarina. E a Bailarina dava voltas e voltas, dançando sempre. E cada vez que rodava, matava indiscriminadamente velhos, jovens e crianças; homens e mulheres.
Não quero pensar nisso. Já chega de memórias. Sempre memórias, nada mais tenho do que memórias.
Eva é o meu nome, mesmo agora, com este corpo deformado. Eva, de mulher. Foi assim que me fizeste, Senhor, foi assim que eu existi.
Não sei se Te lembras, Senhor, mas eu recordo cada instante do reencontro. Sim, eu já o tinha visto muitas vezes, anteriormente. Mas só naquele dia, Senhor, eu senti, de novo, o homem da minha vida, o meu querido Zé António. Chamas-lhe adultério? Pecamos pelas Tuas leis? Mas só Tu, Senhor, tinhas o poder para nos separar. E separaste-nos. Lembras-Te, Senhor? Éramos inocentes ainda, acreditávamos no nosso amor. E foste Tu, Senhor, quem matou a criança que eu levava dentro de mim e que, tão facilmente, me poderia ter dado o regresso.
Insondáveis são os Teus desígnios, Senhor. Mas só a Tua vontade se realiza. Porque me acusas, então? Deixaste que os homens, que Te servem, se atrevessem a acusar-me. Chamavam-me pecadora e adúltera. Que sabiam eles disso?
Maria, a nova mulher e minha amada filha, nunca foi chamada de adúltera ou pecadora.
Lembras-Te, Senhor? Ele era o meu marido, foste Tu quem nos uniu. Sim, ele era o meu marido, estávamos casados já há algumas semanas. Então, porque se afastou ele de mim naquela noite? Lembras-Te das palavras, Senhor? Ele, o meu marido, disse-me que me prenderia às traves do tecto e que me bateria até não poder mais, se eu voltasse a gemer como uma puta. Não precisou de repetir a ameaça, a partir dali eu fui sempre uma esposa casta. Lembras-Te, Senhor? Nem sequer tive que fazer qualquer esforço. Por tudo isso, Senhor, ensinei o que ensinei a Maria. Mas não sei se fiz bem. Quando ela era já uma adolescente, falei-lhe do casamento e de certos males necessários. Mas, Senhor, eu sabia bem que nem sempre era assim.
Maria, uma jovenzinha seca de carnes e, sempre, de porte austero. Tão diferente de mim a minha filha. Desde sempre ela viveu para Ti. Andava de joelhos na Tua casa, esfregando o estrado de madeira. Cultivava flores para o Teu altar. Por amor de Ti, Maria usava vestidos escuros e soltos, que lhe tiravam toda a graça feminina que ela tinha. Não era feia a minha filha, mas recusava mostrar-se bonita ou mulher. Que lhe havias dito Tu, Senhor? Bati-lhe, com as costa da minha mão, na boca. Quis silenciar aquilo que ela dizia à amiga, mais nova do que ela. E as palavras eram Tuas, Senhor. «Menos dano te causará a malvadez de um homem do que a bondade de uma mulher» (Eclesiástico 42, 14). Lembras-Te, Senhor, do olhar de profundo ódio que ela me lançou? E, citando-te outra vez, ela teve a última palavra: «Assim como das roupas sai a traça, assim toda a malícia de um homem vem da mulher» (Eclesiástico 42, 13). Que lhe ensinaste Tu, Senhor?
Casou-se na primavera a minha filha, com quase vinte anos. Mas o casamento não a tornou menos azeda, nem lhe diminuiu o amor por Ti. Era ela quem lavava as toalhas de linho do Teu altar e mudava as flores. Por fim, quis substituir a velha tia Adélia e passou ela a tocar, todos os entardeceres, às trindades. Sim, estávamos novamente em Trás-os-Montes, na paisagem familiar da minha infância.
Quando nos trouxeste para cá, Senhor, já só restávamos eu e o pai. Lembras-Te, Senhor, do flagelo da peste? Ou da voz da mãe, invocando-Te: «Vós sois o meu refúgio e a minha cidadela, o meu Deus em quem confio!»? Ou das crianças repetindo, também elas, os Teus salmos: «Não temerás o terror da noite, nem a seta que voa durante o dia, nem a peste que alastra nas trevas, nem o flagelo que tudo destrói ao meio-dia»? Eu, Senhor, nunca esquecerei a confiança depositada em Ti, por todos eles: «Nenhum mal te acontecerá, a epidemia não tocará a tua tenda, porque Ele deu ordem aos Seus anjos para te protegerem em todos os teus caminhos». Lembras-Te, Senhor? A primeira que enterramos foi a pequenita Isaura, mas tanto o Jacinto como a Adelaide já não saíam da cama. E, de repente, a mãe morreu, ainda diante deles. E eu, Senhor, disse a mim própria que choraria quando houvesse tempo para chorar. Lembras-Te, Senhor, das vigílias que fiz à cabeceira do pai? Ou de quanto tinha que caminhar para arranjar pão e leite? Ou do terror que causava andar nas ruas naqueles dias? A fadiga e a fraqueza eram de tal ordem que nos arriscávamos a desmaiar em qualquer lado e se caíssemos nas ruas poderíamos por lá ficar, tendo como destino as valas dos mortos. Lembras-Te, Senhor, dos fogos que, decerto, chegaram até Ti?
Rezo por eles todas as noites, nas minhas orações. Mas precisarão eles das minhas preces? Tu, Senhor, deixaste-os expiar todos os pecados aqui na terra.
Demora tanto tempo a amanhecer. Se, ao menos, eu conseguisse aquietar o meu espírito. Talvez assim também sossegasse o meu corpo. Dou voltas e voltas, sentindo todos os meus ossos. Arrefeceram-me os pés, que sangue me corre agora nas veias?
Já estamos em Maio. A vida começa de novo a ressurgir. É sempre assim, tudo o que resta são as estações, que se sucedem umas às outras. E o clima.
Daqui a três dias faz oito anos que o Zé António morreu. Mas, na verdade, não são só oito anos, Senhor. Fizeste-o viver entrevado numa cama, durante quase doze anos. Castigaste-o, Senhor. Mas castigaste-o porquê?
Eu vi-o, pela última vez, há mais de dezanove anos. Bem, também o vi morto no caixão. Mas isso, Senhor, será ver alguém?
Foi numa tarde fria, de inverno, que eu fui visitá-lo. Já havia mais de dois meses que ele tinha ficado paralisado do lado esquerdo, com uma trombose. Eu sabia da doença dele, Senhor, mas não sabia onde poderia ir buscar coragem para olhar para ele e não chorar. Sempre o tinha visto cheio de vida. E amava-o.
Lembras-Te, Senhor, da maneira como ele agarrou a minha mão? Lembras-Te, Senhor, do olhar dele naquele rosto deformado? Ele não queria que eu voltasse lá. Ele estava morto e sabia disso. Mas Tu, Senhor, ainda o fizeste respirar durante quase doze anos. Ele já nem sequer falava, Senhor. Não, nunca mais lá voltei. E, enquanto lá estive, não chorei nem uma só lágrima.
Ultimamente penso, muitas vezes, se irei reencontrá-lo. Mas as Tuas leis são estranhas e eu não sei o que me espera. Talvez, neste momento, o meu amado Zé António esteja no paraíso com a sua legítima esposa, também já falecida.
Eu casei-me com vinte e cinco anos, às seis da manhã, na igreja da freguesia. Nessa altura o pai já não saía da cama, tínhamos regressado havia pouco mais de um ano. Ainda no Brasil, no casamento da Clarice, disse-me que haveria de me levar ao altar numa igreja cheia de flores e que, também eu, teria um longo vestido branco. Como eu fiquei contente, Senhor, e imaginei assim o meu casamento com o Zé António. Mas Tu, Senhor, deixaste que, por essa altura, ele engravidasse uma prima e fosse obrigado a casar. Que tristes e densas são as trevas onde me lançaste, Senhor.
No meu casamento estiveram os padrinhos de crisma do Álvaro, que foram os nossos padrinhos de casamento, os pais dele e as duas irmãs, ainda solteiras. Foi uma cerimónia rápida. E às seis e meia o padre rezou a missa do costume. Mas Tu, Senhor, deste-me anos inteiros de outros sonhos.
Passei assim a ser a mulher dele, do Álvaro, que era dois anos mais velho do que eu e um ano mais novo que o Zé António. Que mais podia eu fazer, Senhor? O pai vendera tudo antes de partirmos. Quando regressamos não trazíamos nada. Estávamos a viver de favor na casa do irmão dele, havia mais de um ano. Que mais podia eu fazer, Senhor?
Eva, Senhor. E fizeste-me bonita, tão bonita que mesmo com vinte e cinco anos e sem nada, eu ainda era a rapariga mais pretendida da aldeia. Mas Tu, Senhor, sabias que eu sempre quis o Zé António e só ele. Mas era tarde de mais. Assim sendo, qualquer um serviria. O pai gostava do Álvaro. Ainda bem que o pai não viu nada. Morreu oito meses depois do meu casamento.
«Não temas, porque eu te resgatei e te chamei pelo teu nome» (Isaías 43, 1). Eram palavras Tuas, Senhor. Mas Tu, Senhor, nunca me chamaste pelo meu nome, nem me resgataste.
Lembras-Te da minha primeira noite com ele, Senhor? Porque deixaste que ele fosse assim tão brutal comigo? Talvez Tu não saibas, Senhor, mas muito conseguem perdoar as mulheres. Embora, por vezes, o perdão de nada sirva. Na noite do dia em que o meu pai foi enterrado, ele aproximou-se de mim. Esbofeteou-me quando eu quis recusar. E Tu, Senhor, deixaste que ele fizesse aquilo.
Quando eu era uma criancinha, durante os longos serões de inverno, pegava num banco mais baixo do que os outros e sentava-me junto à mãe. Depois deitava a cabeça no colo dela e ficava assim, ouvindo o pai contar histórias e vendo o fogo a arder na lareira. E a mãe fazia-me festas na cabeça e nas costas.
O tempo, hoje, parece estar mau. Deve chover, por isso é que o dia ainda não clareou completamente.
Que longas são as noites, Senhor. Mas nem sempre foi assim.
Havia mais de três anos que eu tinha casado e nunca tinha feito o que não devesse ser feito. Mas Tu, Senhor, sabias bem como eu era infeliz. Naquela noite eu estava sozinha com a minha bebé de um ano. O meu marido tinha partido para o Porto, nessa tarde, e só voltaria dali a duas semanas. O Zé António também estava de viagem, mas Tu, Senhor, trouxeste-o para a aldeia ainda nessa noite. Só Tu, Senhor, poderias tê-lo levado a fazer os últimos dez quilómetros naquele dia, com a noite a aproximar-se e tendo ele que viajar a pé durante o resto do caminho. Lembro-me, Senhor, de ouvir os uivos dos lobos um bocado ainda antes das pancadas na porta, e do susto que tudo isso me causou. Puxei para dentro de casa um homem tão assustado que não conseguia falar. Senhor, sabes que ele nunca foi cobarde, mas quem não teria medo de uma matilha de lobos? A minha casa ficava um bocado afastada da aldeia e isso foi o que o salvou. Dei-lhe um copo de aguardente, que ele levou à boca com mãos trémulas. Depois daquele, bebeu outro e só, então, começou a falar. Contou-me dos lobos, de como ele os sentira ainda antes do Cabeço de Mouros. Naquela altura seguiam-no de longe, mas era noite e a aldeia ainda ficava distante. E no meio do silêncio começou a ecoar o chamamento deles, juntavam-se para atacar. Saberás Tu, Senhor, o que é ter medo e gritar e ninguém nos responder? A partir dali não sabia muito bem como tinha sido, o espírito dele ficara petrificado pelo medo, mas o corpo arranjara energias redobradas. E foi assim que bateu à minha porta. E foi assim que eu abri, sem saber quem era. É claro que os lobos ainda eram um perigo escondido na noite, era melhor ele ficar por lá até clarear. Ele concordou. Dei-lhe de jantar, uma ceia tardia. Depois avivei o fogo, fui ver a bebé e sentei-me, também eu, à lareira. E, nessa altura, ele perguntou-me pelo meu marido. Respondi-lhe e ele começou a falar do destino e de Ti. Depois falamos do nosso amor, como tinha sido. E eu encontrei-o, de novo.
Quando a manhã nasceu ele continuou comigo. Senhor, sabes bem que eu não tinha forças para o mandar embora, nem ele para partir. Falamos em fugir, mas ele estava casado há oito anos e tinha quatro filhos, e eu tinha a Maria. Que fazer, Senhor? Quando o dia já estava quase no fim, ele partiu.
Que longas são as noites, Senhor.
No princípio da tarde seguinte ele deixou, de novo, a aldeia. Nessa tarde, dediquei-me inteiramente a mim, tratei do meu cabelo e de todo o meu corpo. Depois, fiz novamente a minha cama, desta vez com lençóis bordados, de linho. E quando já estava tudo pronto tratei também do jantar, fiz biscoitos e bolos, assei galinha e preparei empadinhas de carne e saladas. Deixei a mesa preparada para a ceia e fui vestir-me. A noite já tinha chegado, eu vesti a camisa de seda branca, decorada com rendas finíssimas. Tinha sido a mãe quem ma oferecera, no aniversário dos meus dezoito anos. Dissera ela que era para a minha noite de núpcias, mas eu ainda não a tinha usado.
Por essa altura, a menina já dormia tranquila.
Não, eu não tinha combinado nada com o Zé António. Mesmo assim, fui para a lareira, vestida com a seda que me chegava aos pés, mas que pouco escondia. Os meus cabelos, soltos e brilhantes, chegavam ao fundo das minhas costas. E ainda tinham aquela cor tão rara e muito diferente do ruivo habitual, eram da cor do vinho e do sangue e do fogo.
Quase logo, bateram devagarinho na minha porta e eu abri.
Lembras-Te, Senhor, de como o homem da minha vida me apertou nos seus braços? E viveu comigo, sem que mais ninguém soubesse, as duas semanas mais belas da minha existência.
Senhor, só de pensar nisso sinto que valeu a pena viver e sofrer tudo o havia para sofrer. Oh, Senhor! Tu sabias como nós nos amávamos e como nos amamos sempre. E separaste-nos, Senhor. Porquê?
Fiquei grávida do Zé António, mas só eu e Tu sabíamos que assim era. Mas Tu, Senhor, tiraste-me novamente o meu filho. E, desta vez, as memórias ficaram gravadas ainda mais fortemente na minha carne.
Não, não quero pensar nisso. É melhor voltar ao Zé António...
Lembras-Te, Senhor, durante os dias em que me deste o paraíso, como era perfeito o mundo? Ele, o meu amor, acarinhava-me constantemente. Quando eu estava em casa com ele, mesmo nas alturas em que eu preparava o jantar e ele só estava por perto, a minha felicidade era completa. Oh!, Senhor, ele ajudava-me, mesmo nas minhas tarefas de mulher. Lembro-me de ele pegar na minha bebé quando ela chorava. Levantava-a acima da cabeça e brincava com ela. Lembras-Te, Senhor, como eu fiquei surpreendida quando, pela primeira vez, o vi fazer isso? Nunca o pai dela assim a tratara e isso é que era o esperado.
À noite, depois de nos amarmos, ele abraçava-me e dormíamos assim. Nunca as minhas noites foram tão belas. Mas ele, Senhor, era incansável, mais do que uma vez trouxemos as delícias da noite para o dia. E ele beijava-me e acariciava-me sempre que o podia fazer. Mas, Senhor, o tempo escorria pelas nossas mãos e o fim aproximava-se. Lembras-Te, Senhor, das lágrimas que derramei na última noite? Lembras-Te, Senhor, de como ficamos juntos, sem dormirmos, dando voltas à cabeça, na esperança de encontrarmos a solução que não existia.
E, no final dessa tarde, chegou o meu marido. Lembras-te, Senhor, do horror que senti quando, nessa noite, ele me tocou? Virei a cabeça para o lado e suportei o que havia para suportar. Depois, enquanto ele dormia, lavei todo o meu corpo. Mais tarde, estendi duas mantas junto à lareira, que eu tinha acendido novamente, fui buscar a minha bebé e dormi ali até a manhã chegar.
E os Teus padres chamaram-me pecadora e adúltera.
Estou cansada, mas nada disto parece ter fim.
Senhor, porque não me chamas pelo meu nome? Em tempos quis uma paz bem diferente da paz eterna, mas foi-me recusada.
Quando eu tinha cinco anos, o pai voltou de uma feira com uma prenda para mim. Era uma boneca de pano, muito bem vestidinha, com longos cabelos castanhos e rosto de porcelana. Lembro-me dos olhos escuros, muito grandes; das faces rosadas e redondas; e dos lábios pequeninos de boneca. Não tinha um rosto alegre a minha boneca, mas transmitia tranquilidade, a felicidade calma que sempre quis e que nunca encontrei. Chamava-se Catarina. Perdi-a no navio, quando fui para o Brasil.
Lembras-Te, Senhor, do Eduardo? Bateu à minha porta, quando eu abri disse-me que era amigo do Zé António e que trazia uma carta para mim. E eu mandei-o entrar. Lembras-Te, Senhor, dos olhos dele? Eram grandes e inocentes. Quando lhe perguntei porque tinha ido parar à prisão, disse-me calmamente que tinha dado duas facadas a um homem e que o matara. Estava sentado à minha mesa da cozinha e comia a merenda que eu lhe tinha arranjado.
Talvez, Senhor, não haja mais palavras para Te dizer.
Mas Tu, Senhor, sabes que durante toda a minha vida eu não esqueci um só dia o Zé António, o meu primeiro amor.
Senhor! Quando eu soube que iam prendê-lo... Mas pensar nisso não, já de nada serve e o meu corpo ainda se arrepia.
Senhor, Tu sabes que eu teria guardado para mim os meus sonhos, se tivessem sido só meus. Mas, também ele, me esperava nas sombras da noite e na claridade do dia. E Tu, Senhor, separaste-nos sempre. Porquê, Senhor?
«Pedi e dar-se-vos-á; procurai e encontrareis; batei e abri-se-vos-á. Porque quem pede recebe; e quem procura encontra; e ao que bate abrir-se-à.» (Mateus 7, 7). Os meus olhos estão fechados, Senhor. E, agora, tudo o que Te peço é o silêncio, dentro de mim.
Quanta beleza e grandiosidade há nas coisas simples, Senhor. Quando eu era menina, brincava com pedrinhas e corria descalça pelas ruas. Quase todas as tardes a aldeia ficava impregnada pelo cheiro a pão cozido e, às vezes, tínhamos para nós uma bola de centeio ainda fumegante. Partíamos o pão em bocadinhos, que molhávamos em azeite e depois passávamos por açúcar, quando o tínhamos. E não havia nada melhor. Senhor, pouco mais nos davas do que pés ligeiros e rostos sorridentes, mas éramos felizes.
A Alcina foi sempre uma das minhas melhores amigas, companheira de todas as brincadeiras. Mas, quando voltei, recebeu-me friamente. E eu, Senhor, sem saber nada.
O pai estava cansado da viagem, mas eu estava radiante. Voltava, Senhor. Voltava para os meus montes adorados e para o meu querido Zé António. Durante aqueles nove anos não trocáramos quaisquer notícias e Tu, Senhor, sabes bem como isso era normal naqueles dias.
Era Verão, chegamos na hora da sesta, num sábado. Os homens estavam todos sentados debaixo dos negrilhos, junto ao muro da igreja. O carro parou no largo e eu saí. Trazia um vestido branco, com corpete justo, cingido por uma fita muito larga que era cor de vinho. E a terminar o vestido havia uma uma saia solta e comprida. Lembro-me como se fosse agora. Os meus cabelos combinavam com a cor da fita e estavam estendidos pelas minhas costas. E nos meus olhos, Senhor, havia alegria.
Ele viu-me imediatamente. Levantou-se e correu para mim, agarrou-me e fez-me girar no ar. E, por fim, apertou-me nos seus braços. Foi como eu tinha imaginado que fosse. Mas depois, Senhor, quando ele se afastou ligeiramente para olhar bem para mim, qualquer mudou e eu vi que ele, de repente, ficava triste, tão triste como eu nunca o vira.
Depois, Senhor, procurei adormecer o sentir dentro de mim, para não sofrer com a Tua verdade e vontade. Senhor, a Alcina era a mulher dele. Quando ela me via não passava dos cumprimentos ocasionais e acabou por deixar, completamente, de me falar, no dia em que o Zé António foi preso. Senhor, como eu a compreendo. Ela era a legítima, que foi sempre fiel e uma boa mãe e melhor esposa. E ela era minha amiga, antes de eu partir. Tu, Senhor, sabes bem que se não me tivesses feito partir, nada daquilo teria acontecido. Nada. Foi a partida necessária, Senhor?
Os meus pensamentos insistem em continuar, tem vontade própria. Senhor, quem sou eu agora? Será isto o fim? Estarei a reviver tudo porque estou a morrer? Perguntas, quantas perguntas. Mas as perguntas, Senhor, só conduzem a novas perguntas. Não há respostas.
«O vosso Pai celeste sabe do que necessitais antes de vós Lho pedirdes» (Mateus 6, 8). Porque não me socorres, Senhor?
O relógio da igreja bateu as horas. Senhor, como podem ser apenas quatro horas da manhã? Parece-me que o tempo parou e que eu vou continuar aqui para sempre, sentindo tudo outra vez. O passado já não existe, Senhor, não vale a pena contemplá-lo. E muito menos senti-lo.
No Brasil havia as sociedades de baile. Eu frequentei-as meia dúzia de vezes, quando passei a ter folga todas as tardes de domingo. Estava com a mãe um bocado e depois ia, por uma hora ou duas, a uma dessas sociedades. Costumava ir com a Clarice. Podia, tal como ela, ter encontrado o meu marido num daqueles bailes. E Tu, Senhor, sabes como eu era solicitada. Mas, Senhor, para mim continuava a existir apenas um homem, que estava do outro lado do mundo. Vês, Senhor, foi e será sempre assim. Tudo, absolutamente tudo, vai dar a ele. Eu nunca existi, dentro de mim só havia o nome dele e o seu rosto, ou o seu riso e a sua voz, ou o seu sentir e o seu querer. Ele foi sempre todo o meu universo. Oh! Senhor, eu nunca devia ter voltado. Soubesse eu que ele era casado, que ninguém me teria trazido para cá. No Brasil haveria de encontrar um marido que fosse bom para mim e talvez quase tudo pudesse ser esquecido. Mas Tu, Senhor, trouxeste-me para cá e casaste-me com um louco.
Lembras-Te, Senhor, dos ciúmes doentios que ele sempre teve de mim? Mesmo quando eu era absolutamente fiel. Mas razões, Senhor? Quando foi que ele precisou de razões? Naquele dia ele viu-me no baile. Era Páscoa, Senhor. Eu fui só pelo convívio. Que mais poderia ser? Eu estava grávida de seis meses. Trazia dentro de mim o filho do Zé António, mas ele, o meu marido, de nada sabia. Sim, tinham-se passado seis meses desde aquele tempo com o Zé António, seis meses em que continuávamos a encontrar- -nos, sempre que era possível. Mas Tu, Senhor, sabes bem que sempre havíamos sido discretos. Pecávamos, Senhor? Mas, Senhor, que querias Tu que nós fizéssemos? O Zé António andava contente, acreditava que o bebé era dele. Quantas vezes falou em deixarmos tudo para vivermos juntos. Senhor, porque não me deixaste escutá-lo?
Nessa tarde o Zé António aproximou-se de mim e conversou um bocadinho comigo. Senhor, era um sítio público. Ainda agora me interrogo sobre o que terá levado o meu marido a ficar como ficou. Mais a mais, Senhor, quando ele casou comigo sabia muito bem que no meu coração só estaria um certo homem. E que seria assim para sempre.
Quando voltei para casa ele esperava por mim. Tirou-me a Maria e, na frente da criança, deu início ao terror. Lembras-Te, Senhor? Bateu-me com o cinto e deu-me pontapés e foi assim sempre, até que eu perdi a consciência e a lembrança dos acontecimentos seguintes. Mas nas minhas memórias há dores e mais dores. Senhor, ele deitou-me ao chão e deu-me pontapés na barriga. Por pouco não me matou, mas, Senhor, melhor teria sido se me tivesse matado. Ele o assassino, o louco, a besta, matou a minha criança. Podia ser filho dele, Senhor. E ele nada mais viu do que o Zé António a conversar comigo, no meio de um largo cheio de gente, num domingo de Páscoa. Senhor, como permitiste que aquilo pudesse acontecer?
Não sei quem me tirou lá de casa, nem como foi. Quando acordei estava na casa da tia Antónia da estrada. Chamaram o médico, que veio ver-me várias vezes. E eu, Senhor, estive inconsciente dias seguidos.
Lembras-Te, Senhor, como gritei? Tiveram que me segurar, as mulheres benziam- -se e temiam que eu ficasse louca para sempre. Mas tal sorte, Senhor, não me concedeste. No princípio, julgaram que eu ficara assim ao saber que ele estava morto. Senhor, isso era bom, bom, bom. Mas prenderem o Zé António? Senhor, melhor teria sido se me tivesses dado a morte.
Por favor, Senhor, concede-me o dom do esquecimento. É tarde, tão tarde. E depois, Senhor, já tudo acabou há muito tempo.
Dentro de mim passei a viver com uma criança quase morta, que nunca mais senti. O meu estado continuava a ser grave, não me permitindo sair da cama. Tinha pesadelos terríveis e constantes. Nunca sossegava. Mas o tempo foi passando e Tu, Senhor, negaste-me mais uma vez a paz e o silêncio. Que pecados querias Tu, Senhor, que eu expiasse?
No terceiro dia amarraram-me os pulsos, com panos de linho, à cabeceira da cama. Eu gritava dia e noite, mas mais nada acontecia. Até que me esgotei, Senhor, e permaneci inconsciente. Não sei como tiraram a criança de dentro de mim. Quando abri os olhos, de novo, já se tinham passado cinco dias. Disseram-me que o meu filho nascera morto. E eu, Senhor, não perguntei mais nada.
Estive mais quase quatro meses acamada. Mas o Teu mundo, Senhor, continuou sempre. Dezassete anos, Senhor? Ainda me lembro das Tuas palavras: «E tudo quanto pedirdes em Meu nome, eu o farei» (João 14, 3). Senhor, porque é que nunca me ouviste?
Ainda é preciso isto tudo?
Senhor, na parte mais verdadeira do meu ser ainda Te reconheço como Deus de Amor. Deus é Amor e eu nada mais quero ser do que amor. Que dentro de mim haja somente amor, para todos. E para tudo. Quero que a minha alma se liberte deste corpo cansado e suba em direcção à luz.
E a minha filha, Senhor?
Para ela tudo era profano. E quanto ódio havia dentro dela. Ainda agora estranho que ela gostasse tanto do Eduardo, apesar de o ter conhecido apenas com seis anos.
Durante a meninice foi uma criança adorável. Mas, à medida que ia crescendo, ia-se transformando cada vez mais. Os Teus padres e as tias dela estavam sempre a lembrar-lhe a trágica morte do pai, embora certos pormenores lhe escapassem e outros preferissem omiti-los. Na adolescência tinha já as características que nunca mais a abandonaram: era fria e austera. E, Senhor, quanto ódio ela tinha às mulheres, a todas as mulheres que ousavam ser mulheres. Ela nunca se apaixonou, casou-se por conveniência com um jovem que a adorava. Para os Teus padres, ela era o exemplo acabado da nova mulher. Senhor, ali já só havia frieza e austeridade. E Tu, Senhor, viste o resultado disso: o marido dela foi sempre um infeliz.
Culpas, Senhor. Havia sempre alguma coisa para culpar alguém e ninguém estava livre. A mim culpava-me da morte do pai e de tudo o resto. Culpas por tudo o que fosse preciso. Onde é que eu errei, Senhor?
Lembras-Te, Senhor, da mãe? Quando eu era uma criancinha que mal sabia andar, ela levava-me para os montes, íamos apanhar medronhos. Mais tarde ainda arranjava tempo para me ouvir falar do que queria ser ou daquilo que tinha feito, e ao mesmo tempo que conversávamos, ela penteava os meus cabelos. Foi sempre doce e compreensiva a minha amada mãe. Por ela nunca teríamos abandonado a terra que nos viu nascer, mas o pai sempre teve gosto pela aventura, sempre quis conhecer outros sítios e gentes.
Lembras-Te daquela tarde, Senhor? Sim, uns meses antes de partirmos. O Zé António levou-me àquele estranho rochedo que havia nos montes do Regueiral, junto aos lameiros para onde nós levávamos os bois. Subiam-se doze degraus cavados na rocha e no cimo havia sete cadeirões, também cavados na rocha e dispostos em círculo. No centro de tudo, florescia um carvalho. Eu nunca consegui entender como podia existir ali o carvalho, numa pequenina fenda na rocha. Mas a verdade é que lá estava. Nós já lá tínhamos estado algumas vezes, o rochedo ficava no cimo de um dos montes mais altos que por ali havia e, de lá, tinha-se uma vista impressionante. Abarcávamos vários horizontes, como nós costumávamos dizer, referindo-nos aos vários montes que dali se viam, cada um mais distante que o outro. Se não íamos lá mais vezes, era apenas por causa do longo e difícil caminho que tínhamos que percorrer para lá chegar.
Nessa tarde, houve muita solenidade. O Zé António ajoelhou-se aos meus pés e perguntou-me se eu queria ser a mulher dele. Eu estava sentada num dos cadeirões e ele mantinha-se no meio do círculo. Tão séria com ele, eu respondi que sim, que queria ser a mulher dele para sempre. Depois, ele sentou-se ao meu lado, agarrou-me na mão esquerda e ambos juramos amor eterno. E ele disse-me que já estávamos casados, o avô dele dissera-lhe que aquele rochedo era muito antigo e sagrado, que tudo o que fosse decidido ali seria para sempre. E Tu, Senhor, sabes que, de verdade, eu senti que me tinha casado, que eu era a mulher do Zé António e ele o meu homem. E que seria assim para sempre. Só para que conste, Senhor, foi no dia 3 de Março.
Depois, voltamos aos lameiros. Mas, nessa tarde, ele beijou-me muitas vezes. E quando fomos embora, íamos ainda mais felizes do que habitualmente e de mãos dadas. No dia seguinte ele esperava-me ansioso e, nesse dia, tudo aconteceu.
Agora, Senhor, nos meus dias e nas minhas noites dás-me uma infinidade de minutos que eu tenho que gastar. Até quando, Senhor?
Luar de Agosto e sol de inverno. Apesar de tudo eu sempre quis viver. As sombras da minha vida deste-mas Tu, Senhor, com os sofrimentos intermináveis e as dores das partidas. Mas Tu, Senhor, sabes que eu guardei dentro de mim lugares luminosos e eternos. E essa, Senhor, foi sempre a minha verdade: intima e inteira.
A infância outra vez, Senhor. Nos primeiros dias de Outubro fazíamos a vindima. Homens e mulheres apanhando cachos de uvas, que depois eram esmagados pelos pés nus dos homens. Como eu gostava de vê-los, Senhor, pisando nos lagares de pedra o mosto que lhes chegava acima dos joelhos. Quando o vinho ainda estava em formação, o pai trazia-me numa malga de barro aquele líquido espesso e escuro, quase por fermentar. Era doce, muito doce. Estava ainda a meio caminho de se tornar o líquido de cor escura, mas límpida, e de aroma forte, com um sabor que enchia a boca. Mas esse, Senhor, só o provei mais tarde e, da primeira vez, tudo o que notei foi o seu sabor amargo. Mas, para sempre, lembrarei o pai dando-me a provar o mosto doce e espesso, sumo ainda. Ele fazia os melhores vinhos da aldeia. Lembra-Te, Senhor? Ele costumava dizer que o vinho era um sinal de civilização. Onde teria ele aprendido tudo aquilo?
Nas tardes pachorrentas e escaldantes de Verão, sentávamo-nos na calçada, à sombra, e desfolhávamos o milho. E ele contava-me a história dos Doze Pares de França.
Lembras-Te, Senhor? Ele lavrava, com uma junta de bois, um campo para semear batatas. Eu andava por lá, sem fazer nada. Quando ele chegou a meio do campo parou e eu sentei-me junto dele, descansando também. Na terra lavrada, os regos formavam semicírculos prolongados e inclinados. Reparei nisso e perguntei-lhe porque é que ele não lavrava a direito, com se fazia habitualmente. Respondeu-me que todos os que trabalharam aquele campo, antes dele, tiveram imensa dificuldade em conseguir que, mais tarde, a água corresse até ao fim dos regos. Era praticamente impossível ter em todo o terreno boas batatas, precisamente porque a água não chegava a todo o lado. Quando ele começou a trabalhar o campo, descobriu o problema e achou que a solução era lavrar de um modo curvado. Assim, tão simples quanto isso. Mais tarde, muito mais tarde, li certas coisas que fizeram com que, mais uma vez, ficasse impressionada com a inteligência dele.
Noutra altura, Senhor, lavrava ele um olival e eu andava, também, por perto, quando encontrei uma moeda. Mostrei-lha, mas estava disposta a atirar novamente com ela, uma vez que a moeda estava cheia de terra e ferrugenta. Ele disse-me então que eu deveria guardá-la, porque quando se encontrava uma moeda debaixo de uma oliveira, num campo lavrado de fresco e estando nós virados para norte, devia-se ficar com ela pois era uma moeda que traria sorte. De repente, Senhor, ele criara condições especiais. Foi um dom que sempre teve. Dei a moeda ao Zé António, na primeira vez que o fui visitar à cadeia, e disse-lhe que mais nenhum mal lhe aconteceria.
O pai agonizou durante mais de um ano. E morreu sabendo que tudo se tinha perdido. Senhor, por que crimes desconhecidos o fizeste pagar?
Antes de morrer, chamou-me e disse: «Eva, minha querida filha, guarda para sempre o teu coração puro». Mas, Senhor, seria ainda puro o meu coração?
Escuto a voz da mãe, cantando docemente e só para mim: «Dorme, dorme meu bebé... que a manhã logo vem». Mas, Senhor, é ainda noite.
Que fazer, Senhor?
O Eduardo tinha vinte e nove anos, quando apareceu na minha casa. Tinha acabado de cumprir uma pena de oito anos, por ter morto um homem numa briga. O homem também lhe batera e fora o homem quem puxara da faca, mas o Eduardo tirara-lha e matara-o com duas facadas.
No bolso do meu avental estava a carta do Zé António, ainda não a tinha lido. Nesse momento, o Eduardo estava sentado à mesa da minha cozinha, a merendar. Perguntei-lhe para onde ia e ele respondeu que tanto fazia, iria para um lugar qualquer. Disse-me que estava só no mundo. E depois falamos do Zé António, durante o resto da tarde.
Acabou por ficar, estávamos quase nas sementeiras e a ajuda de um homem era bem precisa. Mas, Senhor, o Eduardo não sabia fazer nenhum dos trabalhos do campo. Viu-se imediatamente que nunca pegara numa charrua. Mesmo assim, quis ficar. Garantiu-me que aprendia depressa e, nisso, disse a verdade. Ainda lhe perguntei porque é que queria ficar. Lembras-Te, Senhor? Respondeu-me que era por causa dos meus livros. E, de facto, sempre que tinha tempo disponível pegava num dos meus muitos livros.
Quase nunca falava acerca dele próprio. Quando o vi, pela primeira vez, reparei imediatamente nos seus olhos negros, grandes e inocentes. Era moreno e alto, de ombros largos. Nessa altura usava barba, mas depois acabou por tirá-la e, Senhor, eu fiquei impressionada e admirada ao vê-lo com o rosto barbeado. Parecia quase um adolescente, mas era um homem -- e um homem muito atraente.
Ele gostava muito da Maria. À noite, enquanto eu preparava o jantar, ele contava-lhe histórias de animais que falavam. Mas, sempre que podia, seguia-me com os seus olhos negros. Senhor, Tu sabes que naquela época eu podia dar-me ao luxo de deixar que um homem dormisse lá em casa. Já não havia nada que a aldeia, ou os Teus padres, não me tivessem chamado. Apesar de tudo, naqueles cinco anos eu tinha continuado a lutar, trabalhando sempre. E Tu, Senhor, sabes bem que nenhum homem havia estado comigo, durante todo esse tempo.
A minha casa era bonita, Senhor. As paredes estavam pintadas de branco, havia cortinas nas janelas e flores nas jarras. Eu tinha trabalhado, Senhor. Comprara um cavalo e todas as quintas-feiras fazia mercados, levando cargas do que havia. Frutas no tempo delas, figos secos e azeitonas. Aproveitava o que podia dos meus campos e o resto comprava-o. Mas, Senhor, havia vezes em que fazia quase quarenta quilómetros a pé. Claro que o meu trabalho dava frutos: fui comprando coisas para casa e nunca deixei que faltasse nada à Maria.
Senhor, Tu sabes que tive que lutar. A família do meu marido quis tirar-me tudo, quando ele morreu. Ainda andamos no tribunal, mas nada conseguiram. E eu, Senhor, nunca desisti. Em toda a aldeia tinha meia dúzia de pessoas por mim. Mas chegavam, Senhor.
O Eduardo passou a fazer os mercados e tratava dos trabalhos mais pesados. Embora tudo isso, no início, lhe custasse bastante. O que eu lhe pagava por semana era muito pouco, mas ele tinha casa e comida. Mesmo assim, Senhor, eu sabia que ele me estava a fazer um grande favor.
Quando o Eduardo apareceu, eu tinha trinta e três anos. Mas Tu, Senhor, não havias deixado que os sofrimentos, que me deste, marcassem o meu rosto. E os meus cabelos ainda resplandeciam, sem uma só branca. Já não era uma adolescente, mas mantinha ainda toda a beleza que Tu me havias dado. E ele, Senhor, gostou logo de mim. Sim, eu senti que assim era, mas disse a mim própria que ele só ficava porque não tinha mais nenhum sítio para onde ir. E repeti-o sempre que foi preciso.
Ele estava na minha casa há mais de duas semanas. Naquele dia ele andara a partir lenha com um machado e ficara com as mãos cheias de bolhas, que entretanto rebentaram. À noite, ao jantar, reparei que as mãos dele estavam uma lástima. Depois de ter tratado da loiça e de ter deitado a Maria, fiz uma infusão de malvas e preparei compressas. À medida que lhe punha as compressas nas mãos, fui tendo consciência de que nunca tinha estado assim tão próxima dele, não sabia se era só por isso, mas estava a ficar incomodada. Resolvi, então, acabar o que estava a fazer o mais depressa que pudesse. Mas, de repente, notei a respiração dele mais rápida e os seus lábios aflorando os meus cabelos. E eu, Senhor, afastei-me. Olhamo-nos, mas nenhum de nós disse nada. Depois, eu acabei rapidamente de lhe tratar as mãos e fui-me deitar. Lembro-me que nessa noite mal consegui dormir e pensei várias vezes se ele se iria embora no dia seguinte. Mas ele ficou, Senhor.
Lembras-Te, Senhor, da consoada daquele ano? No fim da tarde, ele entrou em casa e ficou admiradíssimo, parecia que já se tinha esquecido do Natal. Eu tinha enfeitado tudo com azevinho e a mesa estava posta na sala, com a melhor toalha de linho que havia. Passara a tarde a tratar de tudo. Para o jantar havia peru assado, mas também preparara diversos fritos e doces. A Maria andava toda entusiasmada, foi ela quem lhe disse que eu comprara roupas novas para os três. Ele olhou-me, ainda mais admirado. Mas, Senhor, Tu sabes que ele merecia. Todo aquele luxo devia-se a ele, durante aqueles seis meses ele tinha sido incansável. E eu continuava a pagar-lhe muito pouco. Disse-lhe que no quarto dos fundos estava uma tina cheia de água bem quente e que em cima da cama dele estavam as roupas novas. Ele acenou com a cabeça e afastou-se. Estava tudo quase pronto, eu vesti a Maria e depois tratei de mim. Dali a bocado, sentávamo-nos os três a uma mesa maravilhosa. E no final do jantar fomos para a lareira, estávamos todos alegres e faladores. Dei à Maria uma boneca e ela acarinhou-a e brincou com ela toda a noite, não me lembro de alguma vez a ver assim tão feliz. Passamos um serão extraordinário, lembro-me do Eduardo me dizer que nunca passara melhor Natal. Depois fui deitar a Maria, mas voltei. Tinha comprado também uma garrafa de vinho do Porto e assim passamos o resto da noite bebendo e conversando, como nunca tínhamos conversado. Descobri que o vinho transformava os olhos dele, deixava-os misteriosos. Eu sabia que ele me queria. Mas, Senhor, apesar de tudo eu não me tinha esquecido do Zé António. Sabia bem que ele estava na cadeia. Lembras-Te, Senhor, das vezes, em todo o serão, em que pensei como ele estaria, que noite de Natal teria ele? De alguma forma, eu era-lhe fiel. Ele era o meu homem e estava preso. E por minha causa, Senhor. Por tudo isso, Senhor, fiz o que sempre havia feito e fingi que não percebia o modo como o Eduardo me olhava. Desejei-lhe boa noite e fui-me deitar. Nessa noite tive imensa dificuldade em dormir. Senhor, como o meu corpo o queria.
Na noite de ano novo ele não ficou comigo. Disse-me ao jantar que ia sair com amigos, iam fazer uma festa entre eles. Lembras-Te, Senhor, como eu fiquei magoada e surpreendida? Ele nunca saía, por certo que eu não esperava que o fizesse naquela noite. O serão só com a Maria tornou-se aborrecido, eu não conseguia deixar de pensar se ele estaria com uma mulher. Senhor, que tormento. Por fim, quando a Maria já cabeceava fui deitá-la e resolvi deitar-me também. Mais tarde ouvi barulho na cozinha e levantei-me. Ele entrara sem luz e fora contra um banco. Eu trazia na mão uma vela acesa, vinha vestida apenas com a camisa de dormir e o meu cabelo caia solto pelas minhas costas. Nenhum de nós disse qualquer palavra, ele aproximou-se de mim e beijou-me com paixão.
As memórias parecem tomar conta de mim. Sinto a minha mente terrivelmente cansada, mas os pensamentos não desaparecem.
«Não julgueis pelas aparências, julgai segundo a justiça» (João 7, 24). Mas os Teus padres, Senhor, nunca souberam o que era a justiça. Lembras-Te, Senhor, daquela vez em que me recusaram o Teu corpo e sangue? Alto, bem alto, ele disse que eu não podia comungar porque vivia em pecado. Mais tarde soube-se que a criada, uma moça novinha, estava grávida dele, do Teu padre. Bem sei, Senhor, que isso não me diz respeito. E também não me tira a humilhação e a vergonha que ele me fez passar. Senhor, quanta coragem foi necessária para continuar naquela que ainda era a Tua casa. Mas nunca mais voltei à missa. E só me arrependo, Senhor, de ter permitido que a Maria andasse tanto pelas missas e rezas. Senhor, como ela passou a odiar-me. Para ela eu encarnava o pecado. O pecado de ser, realmente, mulher. Mas haveria maior pecado? Mas Tu, Senhor, deste-me o meu corpo e no meu corpo deste-me o meu sentir e o meu querer. Senhor, quem poderá saber, alguma vez, o que Tu esperas de nós?
Agora, Senhor, apenas quero a manhã. Chamo o dia, para acabar de vez com as trevas da noite. Agora, Senhor, todos os meus dias são iguais.
Senhor, que fazer?
Tornara-se tudo estranho, desde a vinda do Eduardo. Para Ti, Senhor, o tempo foi e será sempre uma brincadeira. Mas, Senhor, O Zé António ainda tinha mais doze anos de pena para cumprir. E havia mais de cinco anos que eu estava só. Era muito tempo. E depois, Senhor, o Zé António continuava casado.
Mas, Senhor, já todos desapareceram. E eu espero o fim, o tão desejado fim.
Saberás Tu, Senhor, o que é acordarmos e não sabermos em que dia estamos? Não sabermos nada, não sabermos quem somos. Saberás Tu, Senhor, o que é vivermos apenas de memórias? Coisas passadas.
Às vezes, Senhor, parece-me que tudo o que vivi ocorreu apenas em instantes e acredito que o Teu mundo real não passe de uma fantasia. Outras vezes, Senhor, os minutos parecem-me eternidades e são impossíveis de negar.
Senhor, ficarei assim para sempre? Quase à beira da inconsciência e sem, contudo, conseguir alcançar o silêncio.
Senhor, sinto-me tremendamente sozinha, mais uma vez. Já todos eles voltaram ao pó donde partiram. Eu estou velha, porque não vens em meu auxílio? Senhor, não me abandones, não me deixes entregue à minha mente cansada e ao desespero de não conseguir parar de pensar. Liberta-me, Senhor.
Senhor, Tu sabes que eu bebi sempre o cálice que me deste, até ao fim. Nunca recusei a minha cruz. Mas Tu, Senhor, mesmo as horas de felicidade marcaste com um estranho travo amargo.
Senhor, o Zé António estava preso. Se, no princípio, Tu me tivesses dado o Eduardo por marido, talvez eu e o Zé António pudéssemos viver em paz, longe de qualquer tragédia. Mas só Tu, Senhor, conheces as Tuas razões. E o destino pertence-Te.
Sei que nunca dei ao Eduardo o amor que ele merecia, porque no meu coração continuava outro homem. Mas, Senhor, ele foi sempre compreensivo e tinha o dom de me fazer rir, sem me deixar pensar em mais nada. Antes parecera-me imensamente reservado, afinal ele era capaz de passar horas a falar. Mas nem sempre eu conseguia entendê-lo. Há coisas que só compreendemos se as sentirmos. Lembras-Te, Senhor, ele falava da falta de sentido da vida e do desespero - e isso eu entendia perfeitamente. - Mas ele falava também da ausência de vontade, da razão que insiste em dizer-nos que a morte pode ser uma escolha, uma opção, mesmo quando está muito longe de ser a única alternativa. Senhor, ele tinha vivido tudo isso. E isso, Senhor, era o quê? Querer morrer, sim, quis muitas vezes. Mas Tu, Senhor, sabes bem que nunca considerei a possibilidade de me matar. Pergunto-me, agora, porquê? Só encontro uma resposta, Senhor. Porque não.
Mas Tu, Senhor, dás-nos um destino que, muitas vezes, é assustador e terrível.
O Eduardo nunca conseguiu recompor-se do facto de ter morto um homem. Era o destino, Senhor? Quando me contou como foi acabou tremendo e soluçando como uma criança. E eu acarinhei-o e sosseguei-o, como se acarinha e sossega uma criança.
O pai dele casara-se, segunda vez, era ele um garoto. Lembrava-se mal da mãe, que morrera quando ele ainda era muito novo. Do pai dizia que pouco mais recordava do que a frieza e o autoritarismo. Fora para Coimbra estudar direito, porque era essa a vontade do pai. Naquela noite bebera muito mais do que devia. Lembrava-se que tudo tinha começado por causa de uma mulher da rua, que ele nunca vira antes. Não sabia muito bem como tinha sido, mas recordava que quando começara a lutar sentira o sangue ferver-lhe nas veias e uma vontade enorme de bater no outro. O outro era mais velho e menos ágil, mas puxara de uma navalha. Quando ele viu a navalha sentiu um arrepio percorrer-lhe as costas e toda a sua atenção se concentrou na faca. Não pensara em morrer ou matar. E, de repente, com imensa destreza e rapidez tirou-lhe a faca da mão e, no mesmo movimento, espetou-lha no peito uma e outra vez. Depois, viu o outro cair no chão e, quase pela primeira vez, notou a faca na sua mão cheia de sangue.
Ele matara um homem, um homem que nem sequer conhecia.
O pai dele ainda tentara mover influências, alegou-se que tinha sido em legítima defesa. Mas factos eram factos e ele matara-o, impossível provar que fora o outro quem puxara da navalha. Oito anos.
Quando apareceu o Zé António, ele estava preso há três anos e parecia-lhe que não seria capaz de aguentar nem mais um dia. Conheceu, então, um homem condenado a dezassete anos de prisão que, apesar de tudo, dizia ter feito o que devia ser feito. Foram companheiros de cela, falaram noites a fio.
Tudo isso me contou o Eduardo. Fiquei, então, a saber que ele viera ver-me porque me queria conhecer. Disse-me que mais do que tudo no mundo, queria conhecer-me.
Lembras-Te, Senhor, foi pelo Eduardo que eu fiquei a saber que quando eu parti para o Brasil, o Zé António arranjou emprego numa moagem. E foi sempre juntando todo o dinheiro que ganhava, para comprar uma passagem para o Brasil. Quando ele já quase tinha o dinheiro necessário, o pai dele adoeceu e ele gastou tudo com os médicos. Mas, logo depois, começou a amealhar outra vez. E Tu, Senhor, sabes bem que ele nunca chegou a partir para o Brasil. Antes disso ser possível foi obrigado a casar-se. Foi essa a Tua vontade, Senhor.
E o Eduardo dizia-me que o Zé António estava absolutamente certo, não havia visão que se comparasse aos meus cabelos espalhados pela almofada e ao meu rosto iluminado pelo primeiro sol da manhã. Senhor, como eu gostava de ouvi-lo falar assim. E ele continuava, falando-me de coisas minhas mas desconhecidas para mim. Dizia-me que quando eu ria fechava e abria os olhos com imensa lentidão, como ele nunca vira ninguém fazer. Tinha os olhos de um animal selvagem, afirmava ele, olhos que eram quase verdes e muito claros ao sol intenso, mas que se tornavam cinzentos e profundos noutras alturas.
Senhor, que fazer?
É necessário dar um passo e depois outro, mesmo que dentro de nós apenas exista a total ignorância do que fazemos ou do que deveríamos fazer. Depois, as coisas acabam por se definir. Quem me ensinou isso, Senhor?
Eu e o Eduardo nunca nos casamos, mas vivíamos como se fôssemos casados. E Tu, Senhor, sabes que facilmente eu o teria amado mais do que tudo na minha vida, se não fossem todas as circunstâncias por que eu tinha passado e o meu querido Zé António.
No ano em que eu fiz trinta e nove anos o Zé António regressou, em liberdade condicional. Mas Tu, Senhor, dás com uma mão e tiras com a outra.
Agora, nas trevas ou na luz estou só eu. Melhor era que assim não fosse, a solidão destroi o corpo e a alma. É ainda a Tua vontade, Senhor?
Agora, Senhor, vivo na casa da minha filha. Antigamente era a minha casa. Outros tempos. Agora, Senhor, sou nada. Já quase só posso recordar o que é ser mulher ou mãe. Mas, Senhor, dentro de mim ainda há uma voz inconsolável, que chora os meus filhos mortos.
Lembras-Te, Senhor, de como o Eduardo queria um filho? Pensar nisso não, agora não. Coisas passadas, são tudo coisas passadas.
Que dia é hoje? Senhor, Senhor... ainda há bocado sabia a resposta, sei bem que sabia a resposta. Porque não me libertas? Agora, Senhor.
Talvez isto seja o inferno. Sim, tantas vezes que os Teus padres disseram que seria para lá que eu ia... Inferno, onde haveria choro e ranger de dentes. E as trevas seriam eternas. Eterna parece ser a noite, aqui. E as minhas memórias acabam sempre por me conduzir a dores antigas, feridas não curadas. Na antemanhã dás-me, muitas vezes, ranger de dentes e tremores por todo o meu corpo, que perdeu o calor de outrora. Mas as lágrimas esgotaram-se há muito tempo. Que mais falta? Ah... e será assim para sempre! Em que é que isso me poderá assustar?... Não! É mentira, Senhor, assusta-me sim. Para sempre não, por favor, por favor!
Quando eu era menina conhecia magias poderosas e risonha recitava feitiços contra todos os males. Lembras-Te, Senhor? Sarabico, bico bico. Quem te deu tamanho bico? Foi o d`ouro e o da prata e o que estava na buraca. Charramorro pica o forro, águas ferras ao cortelho, prá mulher do juiz, que está presa pelo nariz, com uma faca de sabão, que lhe corta o coração. Ó pesinho da balança dá um pincho e põe-te em França.
Que nome lhe dás, Senhor?
Agora há imagens vindas dos quatro cantos do mundo e tantas outras coisas que dantes eram inimagináveis. Dantes!? Senhor, como eu detesto certas palavras. Talvez, Senhor, eu tenha passado o prazo de validade. Agora tudo tem prazos de validade.
Quantos anos tenho? É claro, Senhor, que preciso de fazer contas.
Lucidez!?... A senilidade é assim qualquer coisa parecida com a loucura? Claro que pergunto, Senhor. Eu não sei nada, nada de nada. Mas, Senhor, talvez não haja nada para saber.
Apetece-me gritar-Te, Senhor, tudo o que sempre Te quis gritar. Ainda posso sentar-me na cama e gritar, mas tudo isso dá demasiado trabalho. E ela depois chorará diante de mim, e perguntar-Te-á porque lhe deste tal castigo. E eu, Senhor, já não serei mãe - serei apenas castigo.
Carreguei-a dentro de mim, assim como a outros, antes e depois dela. Ao filho do Eduardo chamei-lhe Pedro, como o teu apóstolo. E Tu, Senhor, tiraste-mo quando ele ainda não tinha sequer dois anos. Lembras-Te, Senhor?
Cala-te voz de mãe inconsolável. Agora és nada, nada, nada. Porque choras, ainda? Porque choras e falas com vozes que já não são tuas? Agora és nada, nada, nada.
Mais a mais, Senhor, já ouviste os choros de Raquel. E Ele, o doce Jesus, como suportou os choros de todas as mães igualmente inconsoláveis, que perderam os seus filhos por causa da vinda Dele? Era o destino, Senhor?
Destinos, Senhor? Lembras-Te, Senhor, de certas linhas proféticas? Há coisa que ninguém poderá tirar-me da memória... Dizem as palavras dos Teus homens santos, que a mulher mais sensível entre nós, será capaz de devorar os recém-nascidos saídos do seu ventre e os outros meninos de quem é mãe (Deuterónimo 28, 56 e seg.). E mais tarde, Jeremias, nas suas Lamentações, anuncia também que «mãos de mulheres, cheias de ternura, cozinharam seus filhos, que lhe serviram de alimento, quando da ruína da filha do meu povo» (Lamentações 4, 10). É assim o versículo, não é Senhor? Nem sequer pergunto se Tu, Senhor, poderias permitir crimes tão hediondos. Senhor, Senhor... fizeste os teus profetas nascerem de quê? Não digo de quem, porque não podem ter nascido de uma mulher. Qual seria a fome que levaria uma mãe a... nem sequer sou capaz de continuar!
Não ouviram eles a agonia do desespero de Raquel, que recusou toda a consolação. Porque não falaram eles dos soldados que arrancavam os filhos do regaço de suas mães e os retalhavam, na maior e mais terrível das carnificinas?... Meu bom e amado Jesus, que vieste para redimir todos os pecadores, por Ti pereceram aqueles que não tinham pecados.
Bem sabes, Senhor, que por vezes, tarde na noite, fico assim. Depois passa-me.
Dizia o salmista que «o conhecimento dos Vossos oráculos ilumina, dá inteligência aos simples» (Salmos 119, 130). Quais foram, Senhor, as Tuas palavras que eu não escutei?
Senhor, Senhor, quantas vezes recitei aquela que parecia ser a resposta. A resposta que sempre procurei... «Vinde a Mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e alivirar-vos-ei» (Mateus 11, 28). Talvez, Senhor, nunca tenha havido em mim lugar para a paz, para o esquecimento e para a libertação. E outras foram as Tuas palavras: «Pois àquele que tem, dar-se-lhe-á, e terá em abundância; mas àquele que não tem, ser-lhe-á tirado mesmo o que tem» (Mateus 13, 12). Senhor, como podem as Tuas palavras dar luz e entendimento?
Por vezes, tarde na noite, fico assim. Depois passa-me. Repito-me, bem sei.
É noite aqui, mas lá fora há estrelas. Sei que é assim. Lá fora há sempre estrelas, mesmo quando o brilho do sol as torna invisíveis.
Queria uma luz pequenina, mas capaz de quebrar a obscuridade da noite que há dentro e fora de mim. E queria que os meus pensamentos acabassem.
O silêncio, Senhor. Dá-me o silêncio.
Foi de noite que ele partiu. Na noite do dia em que o Zé António regressou. E eu nunca mais voltei a ver aquele que foi o meu verdadeiro marido. No princípio nem quis acreditar, mas os dias sucederam-se e novas do Eduardo não houve. Chorei, Senhor, noites inteiras. Chorei até não ter mais lágrimas.
Uma vez, acordou-me às quatro horas da manhã e levou-me para as escadas do adro. Queria que eu visse um cometa. Lembras-Te, Senhor?
Dentro de nós, a quem Tu, Senhor, pouco mais deste de que sangue e lágrimas, há um coração capaz de amar toda essa vasta maioria da humanidade, que é decente e boa. E dentro de mim, decerto, havia amor suficiente para o Eduardo e para o Zé António. Porque partiu o Eduardo? Temeu que eu e o Zé António voltássemos a ser amantes? Mas, Senhor, que mal maior do que a partida dele poderia isso causar?
Nunca mais o Zé António e eu voltamos a encontar-nos como homem e mulher. De alguma forma a partida do Eduardo separou-nos a todos, para sempre.
Longos se tornaram os dias, mas as noites ameaçaram ser eternas. E, a partir dali, foi sempre assim. Talvez, Senhor, esse tenha sido o destino que escolheste para mim.
O Eduardo falou-me, uma vez, de coisas que ele viveu, ainda antes de ir para a cadeia. Falou-me da indiferença, da quase absoluta ausência de sentimentos. Senhor, como entender isso? Sim, como entender isso? Mesmo assim Tu, Senhor, sabes com que desespero eu quis e lutei pela indiferença, depois da partida dele. Quis acabar com o sentir, mas tudo o que consegui foi o nunca mais acabar de voltas e o sono que teimava sempre em não vir. Houve um tempo em que achei que estava a caminhar para a loucura. Na minha mente nunca acabavam as perguntas, mas não havia qualquer resposta. E, de repente, começaram as acusações a mim própria. O desespero, Senhor. E ele, ele, ele... onde estava? Como estava? Senhor, de que tormentos quis o Eduardo livrar-me e livrar-se? Haveria maiores torturas?
Nunca duvidei que o Eduardo me amava. E isso, Senhor, ainda era o pior. Gritei na noite e quis trazê-lo de volta. Mas a partida foi para sempre.
Estranhas coisas fazem as pessoas que amam, por aqueles a quem se dirige o seu amor. Agora estou velha e já nada sei acerca do amor, ou dos sacrifícios que tanto gostamos de lhe associar. Mesmo assim, Senhor, vou atrever-me a fazer uma perguntinha. Não seria melhor tentar saber, primeiro, se o outro quer e aprecia o sacrifício?
O Eduardo condenou-me com a sua partida, privou-me de toda a felicidade e até de paz. E, tenho a certeza, condenou-se a ele próprio. Senhor, porque nos fazes com tão pouco entendimento e com tanto espírito de martírio, pelo menos em relação àqueles que são o centro do nosso mundo? Já sei, Senhor, não há respostas. Ou talvez haja... talvez o amor só seja completo quando formos capazes de retirar em definitivo, de dentro de nós, o mais destrutivo dos sentimentos: o medo. O medo corrompe, leva-nos ao desespero e a actos de insanidade. Ter medo que o amor do outro acabe ou temer que não seja tão grande como o nosso, são sentimentos indignos de quem ama.
Eduardo, Eduardo... porque é que partiste para longe de mim?
Se tu me tivesses deixado falar-te daquilo que construímos juntos, do imenso amor por ti que gradualmente tomou conta de mim. Sim, é certo, continuava a sentir pelo Zé António um enorme carinho e, também, imenso amor. E ambos éreis insubstituíveis. Eu amava-te. Porque é que não acreditaste em mim? Porque é que comparaste, somente para ti próprio, sentimentos que eram meus e que nem eu saberia comparar? Porque me abandonaste? Se tu pudesses ver-me, ainda agora. Se tu me tivesses visto apenas numa das vezes em que o sofrimento tomou conta de mim. E foi assim noite após noite. A dor da tua partida. Lembras-te Eduardo? Dizias-me que todos os meus sofrimentos já tinham sido chorados, que tu não deixarias que houvessem mais dores ou lágrimas na minha vida.
Eu amava-te! Ainda te amo e não sei de ti. Quantos anos, Eduardo? Quantas noites inteiras de lágrimas e insónias?...
No princípio... ora, no princípio o quê?
Ainda agora? Esquece. Dorme. Dorme. Dorme... por favor, Senhor!
No princípio, Senhor, separaste a luz das trevas. E viste que a luz era boa. Mas isso, Senhor, foi apenas no princípio. Depois, aqueles que Te seguiram esqueceram-se da luz e insistiram em falar das trevas, pregaram a religião do medo.
Por amor do Teu nome? Senhor, em toda a aldeia apenas o Teu padre conhecia os Teus Evangelhos, enquanto o resto das pessoas não só os ignoravam, como praticavam um culto elementar, atulhado de superstições e medos. Por amor do Teu nome, Senhor?
Foi em Setembro, nos últimos dias do mês. Começava a anoitecer, eu andava a apanhar os figos que secavam no estendal de palha, na eira. Ainda agora sinto arrepios, só de me lembrar dos gritos dela. Ela era pouco mais que uma criança, teria talvez uns catorze ou quinze anos. Lembras-Te, Senhor? Era a filha da Berta.
Como sabes, Senhor, a minha casa ainda distava um pouco da aldeia, e ela estava no meio da povoação. Senhor, que gritos aqueles. Larguei tudo e corri, ouvindo cada vez mais fortemente os gritos insanos. Quando cheguei já lá estava quase toda a gente da aldeia. Vários homens tentavam cercá-la e, no meio de todos, ela oferecia um espectáculo terrível. Arranhava-se a si mesma, olhava assustada para todos os lados e gritava como nunca ouvi ninguém gritar. Senhor, que fazer?
Mais tarde amarraram-na, com cordas bem grossas, e chamaram o Teu padre. Senhor, como ela lutou para fugir dali. E gritou ainda mais, quando viu o padre. Mas tinham-na amarrado, nada havia a temer.
Foi com palavras que mais ninguém entendia que ele lhe fez as rezas. Lembras-Te, Senhor? Já não se podia dizer que ela tivesse medo, ela nada mais era do que medo. Mas Tu, Senhor, estiveste sempre lá, foi na Tua casa que ela ouviu falar das almas que se haveriam de perder, por causa de certas vontades e dos desejos carnais; foi na Tua casa que ela ouviu falar do fogo do inferno e das trevas exteriores a Ti, onde para sempre só haveria choros e ranger de dentes. E Tu, Senhor, também estiveste presente nos longos serões, de inverno, em que se contavam histórias de espíritos imundos que se apoderavam das pessoas, roubando-lhes a alma.
Senhor, de que teria ela medo?
O Teu padre disse que ela não podia comer e nada mais lhe deram do que pão e água. Continuou amarrada, até que deixou de ser preciso mantê-la acorrentada a uma cama, ela já não tinha forças para nada. E o Teu padre esqueceu-se de a considerar purificada. Não, não se esqueceu. Uns meses depois, valorizou a alma que resistiu às tentações do demónio. Lembras-Te, Senhor? Estávamos todos no cemitério. Quando a vi no caixão, ela tinha-se transformado numa mulher velha, os ossos do rosto estavam salientes e tinha a pele toda enrugada. E as mãos, Senhor? Nunca vi semelhante magreza.
Senhor, que fazer?
Sei que noutro tempo havia fogueiras a clarear a noite e risos de homens e mulheres, que dançavam à volta do fogo. Havia rituais de fertilidade na época das sementeiras. E a vida era a maior das dádivas. Havia os ritmos lunares, as estações, a iniciação sexual, as estrelas cadentes e o raiar do sol em certos dias, ou a intensa cor de sangue no seu poente. E tudo isso adquiria valores religiosos para aquela humanidade primitiva e carênciada de quase tudo. Havia medo e fascínio, mas, Senhor, nada era maior ou mais sagrado do que a vida.
Porque é que não fui embora daqui? Porque não parti, de novo, para o outro lado do mundo? Senhor, foi aqui que eu nasci, a pouca felicidade que me deste conheci-a nestes montes agrestes. Talvez tenha sido por isso...
Lembras-Te de mim, Senhor? Deste-me vivacidade e uma enorme vontade de aprender coisas novas. E fizeste-me apaixonar por tantos universos imaginários, que eu encontrava nos romances que sempre guardei. Lembras-Te, Senhor, da mala cheia de livros que eu trouxe do Brasil? Histórias de magia e de saber... já se perderam, foram rasgados pelos pequenos. Sim, quando eu deixei de ter autoridade para o que quer que fosse. Agora pergunto-me para quê? Para que é que eu queria os livros? Porque é que os guardei e reli? O conhecimento apenas criou um abismo ainda maior entre mim e o mundo à minha volta. Aqui, nesta minúscula aldeia, onde mal se podia dizer qual era a idade do mundo, para que poderia servir a literatura? E agora, Senhor, é tudo tão diferente, mesmo por estas paragens. Senhor, se eu tivesse nascido três ou quatro décadas mais tarde... Seria tudo tão fácil! Pelo menos parece-me que sim.
Senhor, se eu me atrevesse a contar, aos meus netos, os dramas da minha vida, que diriam eles? Bem sei. Mas, mais do que ninguém, os jovens de agora proclamam que não há impossíveis. Claro que há, mesmo agora. Também não posso dizer que certos acontecimentos da minha vida foram absurdos, porque ninguém vive sozinho. Ninguém é uma ilha. Não passamos de pequeninos bocadinhos de terra, vales insignificantes rodeados de montanhas eternas. Mas Tu, Senhor, disseste: «...Se disserdes a este monte: ´Tira-te daí e lança-te ao mar´, assim acontecerá» (Mateus 21, 21). Quando foi assim, Senhor? As montanhas, por vezes, até nos deixam avistar caminhos, mas a qualquer momento podem tornar-se intransponíveis. « ... tira-te daí e lança-te ao mar...» Senhor, estranhas são as tuas palavras. E, decerto, o seu sentido está escondido dos mortais pobres e sozinhos.
Senhor, continuas sempre a negar-me o esquecimento.
Não sei se estás aqui comigo. Mas se não estás, eu digo-te: neste momento sorrio só para mim. Sei lá porquê!... Porquê, Senhor?
Não me assusta a noite que promete ser eterna. Mas, mesmo assim, se amanhecer, também eu, como muitas das Tuas criaturas em todos os tempos, louvarei o deus renascido. Embora para mim nada mais represente do que o sol. Sol de outro dia. Nada mais, disse eu? Eu, Senhor, apenas espero o fim. Mas o sol de outro dia ainda é calor, visão e luz. E a luz será sempre boa, abençoada, bem-vinda. Talvez o medo só desapareça quando forem banidas as trevas, todas as trevas. Isso faz-me pensar na morte, no que poderá ser a morte. Vou contar-Te um segredo, Senhor. Quando penso na minha morte, a maior parte das vezes, imagino-me livre, caminhando descalça por uma praia deserta e infindável. E sinto nos meus pés a macieza da areia e o mar quase chega até mim, na carícia suave com que encontra a terra. O céu é intensamente azul e à minha volta tudo está inundado pelo sol. E eu, Senhor, sou eu outra vez... com a minha pele jovem e os meus longos cabelos de fogo. Não imagino mais nada, Senhor. Poderá ser assim para sempre, ou apenas por um instante.
Por favor, Senhor, por favor!
A última vez que eu vi o mar foi quando voltei do Brasil. Porquê? Porquê o quê? Porquê escolher ficar aqui até ao fim? Senhor, quantas vezes já perguntei isto a mim própria. E de cada vez nova resposta. Foi o destino, Senhor?
Lembras-Te, Senhor, quando nos dás aqueles momentos em que ainda é tudo, ou quase tudo, possível? Instantes apenas, mas instantes de magia e de verdadeira mística, que tornam o mundo novamente jovem e a nós também. Não sabemos nada e enquanto nada sabemos tudo é ainda possível. Tudo possível. E atrevemo-nos a sonhar. Em segredo inventamos as nossas asas. De cera e penas, pois então. É claro que nos fazes sempre despenhar das alturas, mas isso é depois. Pior é quando nem sequer somos capazes de levantar voo, quando ficamos para sempre seres rastejantes, que já não querem ou não sabem ter asas para voar. Não era isto que. Sim, eu falava do antes, Senhor. Dos momentos anteriores ao despertar. Lembras-Te, Senhor? Nada mais somos do que humanos que pouco sabem, com os nossos medos e os nossos actos de coragem, com as nossas forças e as nossas fraquezas, com atitudes boas e outras que nem tanto. Mas, nesses momentos mágicos, há dentro de nós reconhecimento por Ti, indiscutível Deus do Amor e do Perdão. Os olhos sorriem, Senhor, e procuramos o brilho de alegria nos outros olhares, mesmo em desconhecidos. Enquanto tudo ainda é possível, há dentro de nós um coração agradecido pelos sonhos.
Estranho, não é? Em mim ainda a fala das crianças. Terei também duas tranças caídas pelas costas e pés ligeiros? Não sei. E, de resto, que posso eu saber? Certeza é uma palavra sem sentido. Aprendi isso há muito tempo, mesmo muito tempo.
Aqui está escuro, não posso ver nada. Nem ver-me. É noite, noite, noite. Mas há estrelas lá fora. Sei que é assim. Sei que ainda é assim. Ou, pelo menos, acredito que é assim, que ainda é assim.
Dorme, dorme meu bebé... que a manhã logo vem.
Mentira. Era que a mamã logo vem. Foi lavar os cueirinhos à fontinha de Belém.
E o resto?... Talvez não houvesse mais nada.
Dorme, dorme... meu bebé.
Não quero continuar a lembrar-me de tudo. Não quero lembrar mais nada. Quero esquecer e voltar atrás e ser outra vez menina. Não é isso que eles dizem? A linguagem das crianças, Senhor. Não, recuar tanto também não. Tu sabes, Senhor. A linguagem das crianças naquela que eu fui um pouco mais tarde.
Haveria de ser noite, uma noite de lua e luzeiros. E eu dando voltas e voltas, dentro de um longo vestido.
Não me devia ter lembrado, agora, do Laribau e da sua concertina maluca, que parecia ter vida própria. Mas quem é capaz de ter mão nas recordações?
Laribau bau, bau... batatas com bacalhau. E ele corria atrás dos raparigos. Era assim que ele lhes chamava: raparigos. Corria atrás deles para não os alcançar. Ele era doido. Apesar disso, ou talvez por causa disso, foi o meu melhor amigo. Ensinou-me as verdades mais verdadeiras e também as mais necessárias. Lembras-Te dele, Senhor? Parecia saber sempre tudo o que havia para saber.
Quando as repolgas e as caçoas começavam a rarear ele informava-nos a todos, com pompa e solenidade, da vinda da longa noite. Falava da oferendas e rituais perdidos, que só ele recordava. E sacrificava-se, dormindo um sono quase tão longo como a noite. Só saía debaixo das mantas dele quando a isso o obrigavam as necessidades fisiológicas. Não se preocupava com comida ou com qualquer outra coisa. Comia quando alguém lhe levava alguma coisa para comer. Lembras-Te, Senhor, de todas as vezes em que fui lá com almoços ou jantares?
E ele voltava apenas com o ressurgir da vida.
Corredores da memória, cheios de salas e salões. Dentro de mim, rostos e vozes que perduram. Antigamente... isso leva-me, de imediato, a um mundo que parece já não existir e é mentira. É mentira que esse mundo já não exista, é mentira enquanto eu estiver por cá. Mas, mesmo para mim, a minha voz fala no passado.
Um dia, quando eu era uma criança pequena, brincava na sacada com um jarro verde e vasos de malvas ainda por florir. O Laribau parou na rua e olhou para mim. Ele já era um homem naquela altura, um homem doido. Perguntou-me que ervas eram aquelas, que eu tinha nos vasos? Respondi que não eram ervas, mas sim flores. Chamavam-se malvas. Ele riu-se de mim e disse que as minhas ervas, se calhar, eram couves. Não sabia eu que as flores tinham pétalas e cores e perfumes e faziam o mundo parecer outro? Porque lhe chamava flores? Porque sim, insisti eu. Ele ficou sério, de repente. Disse-me que porque sim estava bem. Talvez as minhas ervas se tornassem flores, porque sim.
Lembras-Te, Senhor?
Mais tarde precisei de recordar a mim mesma aquele talvez, quando encontrei ervas que não se tornaram flores. Porque não.

Espera aí Carriça, vaca doida, porque tens que andar tão depressa?
Hoje o Zé António não vem. O pai dele vai lavrar o prado do alfaiate. Logo hoje que eu ia arranjar uma cigarra cantadeira, bem melhor que todos os grilos que ele conseguiu apanhar e eu não. Não importa, fica para outro dia, amanhã.
Hoje vou atirar folhas de negrilho para o ribeiro, depois corro atrás delas, mas não na água, eu só posso andar pela terra, na erva fresca. Claro que vou descalçar-me, mesmo com aquela humidade que se pega aos pés.
Talvez não devesse brincar, ainda só há uma semana que morreu o meu Malhado. Nunca mais quero outro cão, também não há outro como ele. Onde estará ele agora? A avó disse que só as pessoas iam para o céu. Como pode ser assim? Eu tenho medo por ele, sepultado na terra fria. Ontem meti-me na arca do centeio, mas tive medo da escuridão e saí de lá, não fiquei a saber muito bem como era. É claro que o meu Malhado não está lá, ainda debaixo de toda aquela terra. A avó sabe muitas coisas mas não sabe tudo, eu sei que tem que haver um céu para os animais, para o meu Malhado e para os pássaros e para os outros animais todos. Não sei como a avó foi capaz de dizer que não havia, não podia ser assim, Deus Nosso Senhor não ia querer que os animais não tivessem um céu. Tem e pronto. E o meu Malhado anda agora atrás dos coelhos, que também vão para o céu dos animais. Mas corre só atrás deles, Deus Nosso Senhor não deixa que ele os apanhe, porque estão todos no céu, é tudo só a brincar.
Vou apanhar um ramo de flores e atirá-las à água, depois Deus Nosso Senhor vai vê-las e diz ao meu Malhado, que aposto torce o nariz para fazer de conta que não gosta de flores. Mas Deus Nosso Senhor também lhe diz que as flores são minhas e o meu Malhado vai apanhá-las com os dentes e anda com elas por um bocadinho até se aborrecer por não poder ladrar por causa das flores que leva na boca, e pousa-as em cima de uma fraga pequena para as ir buscar mais tarde mas depois esquece-se e elas secam ao sol, mas eu não me importo porque gosto muito dele e sei que ele é distraído.
Já estou quase a chegar aos lameiros do Regueiral. Agora é a Marela que vai cheia de pressa, daqui a bocado vai querer voltar para casa, para dar de mamar à vitelinha. Mas eu não posso deixá-la ir embora, por isso tenho que ralhar-lhe e convencê-la de longe a deixar-se estar no lameiro. O pai fez-me uma vara grande e eu aceno-lhe com ela, à Carriça quase não é preciso, mas a Marela é má. Não, não é má... ou é só um bocadinho. Eu tenho medo dela e não o digo a ninguém, mas o pai fez-me a vara grande sem eu lhe dizer nada e eu fiquei toda contente. A Marela às vezes abana a cabeça com força e bate com as patas dianteiras no chão, mas eu digo a mim própria que não preciso de ter medo porque ela não quer mesmo fazer-me mal, é só para me assustar. E eu não me assusto porque não me posso assustar. Sei que é assim e por isso digo-lhe com voz chateada para voltar para o lameiro, ponho-me à frente dela e aceno-lhe com a vara e ela pouco depois obedece-me e fica tudo bem.
Olha, hoje é que eu podia ir ver se já há repolgas de sobreiro. Mas não sei se devo, só se não me aventurar muito nos montes é o que me dizem todos. Se o Zé António tivesse vindo éramos capazes de calcorrear uns quantos sítios, mas com ele não havia problemas. Subíamos às fragas e gritávamos para que o eco nos respondesse e o eco respondia-nos, e nós riamos. Mas sozinha é melhor não fazer nada disso, posso cair e ficar lá perdida sem que ninguém me encontre; é o que me diz a avó.
Vou fazendo riscos no chão com a minha vara muito grande, levo-a arrastada. Até parece que não sei o caminho de volta e que estou a marcá-lo, mas claro que sei. Conheço todos os caminhos que há para conhecer, se quisesse até era capaz de dizer qual é o caminho para a Torca, mas nunca lá fui. A avó diz que lá ainda há feiticeiras e animais que falam, mas eu acho que é mentira. Não, eu só digo que é mentira porque o Zé António diz que isso são mentiras. Eu queria que fosse verdade, que houvesse mesmo feiticeiras e animais que sabem falar e outras coisas encantadas. Às vezes ainda acredito que é assim, que há magias escondidas e coisas bonitas e de alegria, que ninguém vê. Era tão bom se assim fosse. E acho que Deus Nosso Senhor não se havia de importar, se fosse assim. Mas digo que é mentira porque não quero que se riam de mim, por acreditar em coisas que ninguém vê.
À noite, nas escadas do adro, vejo as estrelas e também acredito em coisas que não sei dizer a mais ninguém, só ao Zé António, mas dessas ele também gosta e não diz que são mentiras. Sento-me com as pernas cruzadas e fico a olhar as estrelas até me doer o pescoço ou alguém me chamar. Imagino-me a viajar no meio daqueles luzeiros que enchem o céu, e há tantos rumos para seguir que eu não sei qual deles querer e quero-os todos, mas só posso seguir um de cada vez.
Podia haver uma senhora das estrelas, como há a Senhora da Serra ou a Senhora dos Montes Ermos. E a mãe sabe orações em que se chama à Nossa Senhora estrela da manhã, mas porque há-de ser só uma estrela quando são todas tão bonitas e há tantas? E eu havia de gostar de rezar à senhora das estrelas que teria no coração a mesma vontade de voar e de estar perto daquele luzeiro e depois conhecer outro e sonhar tudo outra vez. Mas talvez já haja e eu não saiba. A mãe também diz porta do céu, para se referir à Nossa Senhora. Porta do céu e estrela da manhã... são nomes tão bonitos.
Como serão as feiticeiras do monte da Torca? Serão assim belas como a Nossa Senhora? Assim senhoras cheias de encantos e doçura, talvez também apenas imagens... as imagens de um mundo de mistérios e de muitas magias, que as senhoras sem pecados guardam de olhares que não sejam puros; é assim que a avó diz. Porque é que me lembrei disto agora? Se a mãe me ouvisse...
As bruxas são más, mas eu não acredito em bruxas. As feiticeiras não são bruxas, as feiticeiras são as senhoras da magia e do sonho, como poderiam ser más?
Às vezes a mãe fala de Senhoras tristes e mortificadas pelos pecados dos homens, e eu também tenho pena. E quando é assim prefiro acreditar que vai ficar tudo bem e esquecer-me depressa, mas eu também não podia fazer nada...
Amanhã é domingo... é domingo, derrete o pingo, gato-montês salta prá rês, que a rês é de barro, salta pró adro, que o adro é d`ouro, salta pró touro, que o touro é valente, mata toda a gente...
Hoje o Zé António não vem...
Vou procurar medronhos e apanhar muitos, depois levo-os para casa e dou-os à mãe. Quando eu era pequenina ia apanhar medronhos para os montes, com a mãe. Eu acho que não me lembro mesmo, mas sei que foi assim. Gostava de poder lembrar-me da mãe a apanhar medronhos comigo. Agora ela tem sempre muito que fazer, mas eu sei que tem que ser assim e está tudo bem.
Hoje o Zé António não vem e eu queria que ele viesse sempre.
Daqui a bocado volto para casa. Daqui a bocado não, daqui a muito tempo.
Eu acho que queria ser uma feiticeirinha, como aquelas que guardam o monte da Torca, e assim podia estar em todo o lado. E se eu fosse apenas uma folha arrastada pelo vento? Qual vento? O vento norte não, agora já anuncia chuva e é frio. Talvez uma brisa de Verão, fresquinha e boa, e eu apenas uma folha voando com o vento. Mas se eu fosse só uma folha arrastada pelo vento se calhar não sabia que era, se calhar não sabia nada. Não, eu queria ser sempre eu, mas poder ser eu de outras maneiras. Como quando me meti na arca do centeio. Não, dessa vez era diferente, eu não queria continuar a ser eu, queria saber como era para o meu Malhado, como tinha passado a ser para ele. Mas é claro que não serviu de nada, até porque o meu Malhado já está noutro lado, num sítio que não é escuro nem frio. Não gosto de sítios escuros e frios, assustam-me.
Hoje há sol, muito sol. E assim é bom. A Alcina e a Carma e os outros todos andam contentes lá pela aldeia, aqui é tão longe. Mas mais logo voltarei...
Queria tanto que o Zé António estivesse aqui comigo...

Talvez, Senhor, eu devesse falar de profecias... mas só conheci as Tuas vontades quando o futuro se foi tornando presente. E Tu, Senhor, deste-me sonhos e pesadelos. E eu fui feliz e triste. Mas tudo acabou, como tudo acaba. Não há sofrimentos ou felicidades que durem para sempre. E é pena, porque para sempre seria um destino.
Quando eu era uma criança sabia como esquecer depressa.
Senhor, que fazer?
Coisas passadas, bem sei que agora apenas tenho isto...
O que é que pode ser mais real do que isto? Mais real do que este nada compacto, palpável e absoluto. O nome deve ser fim, o nome para isto. Ou talvez não haja fim nenhum, talvez fim seja apenas uma palavra e uma palavra sem sentido. Mesmo assim continuo aqui, à mercê de algo que não sei o que é, algo que me assusta e que desperta a minha raiva. Já quase não há vida em mim, ou à minha volta. Mas, dentro de mim, incendiado pelos pensamentos continua o meu ódio, último vestígio daquela que já não sou nem quero ser.
Eu estou morta. É a verdade, Senhor, sabes que é assim. Mas os pensamentos insistem em continuar. Já não me atrevo a dizer os meus pensamentos... serão ainda meus? Saber, Senhor, é demasiado complicado. E, depois, quem se contentará alguma vez em saber apenas o que as coisas são? Nomes, isso nada mais seria do que nomes. É preciso descortinar o porquê. E, já que estamos nisto, saber como será no futuro. Ou, o que ainda é pior, saber como deverá ser. Por favor, Senhor. Precisavas de nos fazer assim?
Podia ter escolhido equações mais simples, daquelas em que as respostas são meros «porque sim» ou «porque não». Mas nunca o fiz, reconheço isso. Porque é que nunca o fiz? Cá estou eu outra vez... esqueço-me que agora já sei a resposta, o tal porque não. Como vês, Senhor, a minha sabedoria parece-se demasiado com cansaço.
Lembro-me de vez após vez, quando as coisas insistiam em ser dolorosas e, apesar de todos os apesares, ainda eram importantes... sim, lembro-me de, nessas alturas, dizer a mim mesma que no futuro, num tempo qualquer que haveria de chegar forçosamente, ao recordar-me de tudo aquilo teria vontade de rir. Claro que, de tempos a tempos, esquecemo-nos de tudo, mas também acabamos sempre por nos lembrar. E o desespero pode, de facto, ter partido, mas a mágoa fica. Permanece inteira na sua absoluta intemporalidade. Não me recordo, sequer, de ter tido quase vontade de rir.
Senhor, Senhor...
Estes momentos de solidão, da mais completa solidão, não pagaram ainda todos os pecados que havia para saldar? Talvez essa não seja a troca que Tu queres, Senhor. O quê, então? Posso fazer um último esforço e procurar, dentro de mim, os fósseis de qualquer coisa apenas agradável. Mas nas minhas memórias tudo roda continuamente. E mesmo naquilo que foi agradável encontro a outra face da moeda. Não há nada que seja apenas, apenas isto ou apenas aquilo. É tudo mais, tudo muito... o que é que ainda tenho que exorcizar?
Porque é que a noite não tem fim? Estou morta, Senhor. Quero o silêncio, pago o preço que tiver que pagar. Quero o silêncio, o silêncio, o silêncio...
Ontem... terá sido ontem? Não importa, ontem serve. Ontem o quê? Brincas comigo, Senhor. E o que é que eu posso fazer?... Ah! Ontem, quando estava sentada na varanda, vi passar na rua crianças carregadas de giestas floridas, braçados de flores brancas e amarelas. Ainda fazem isso, mas já não sabem porquê. Também eu, noutro tempo, colhi ramos de giestas floridas. Púnhamo-las nos degraus de pedra e prendíamo-las às portas. Chamávamos-lhe maias.

Foi tão fácil subir e agora o que faço para descer?
Ainda bem que não há mais ninguém aqui, era uma vergonha. Assim também é, mas só eu sei. Por favor, Nossa Senhora, dai-me coragem para saltar. Eu sei que sou capaz, claro que sou. Sou! Só tenho que me atirar e pronto. Como é que eu não vi as pedras ao subir? O chão está cheio de pedras, não tenho para onde saltar. E o sobreiro é alto, mais alto do que me pareceu na subida. E agora? O que é que eu faço?
Há quanto tempo estou eu aqui? Nem sequer sei se as vacas saíram do lameiro, se calhar foram-se embora. Não, não, melhor pensar que não.
Porque é que eu faço as coisas assim? Ainda não aprendi a medir o que posso ou não posso fazer?... O pai tem toda a razão quando diz à avó que não é preciso ralharem-me, eu própria ralho comigo quando tem que ser. Pai! Agora só queria que o senhor estivesse aqui, para me ajudar a descer. Eu sei que isto é uma vergonha, eu já não sou uma criança pequena... mas há tantas pedras lá em baixo que eu tenho medo de saltar.
Nunca devia ter subido, nunca. E agora? O que é que eu faço?
Tirem-me daqui!!! - Para que é que gritei? Bem sei que por estes montes não anda ninguém. Estou aqui sozinha e não sei como hei-de descer. Não, não vou começar com choradeiras. Eu não choro! Eu tenho coragem, claro que tenho. O pai diz-me sempre que eu sou uma rapariguinha corajosa. Já sei: fecho os olhos e salto mesmo. Pronto!

Não lembro o princípio. Não exactamente o princípio, apenas uma voz na minha cabeça dizendo-me que isto era o despertar. Despertar, então. Mas despertar para quê? Porquê? É assim: estive a dormir e agora acordei. Bem sei que isso pouco me diz, mas, de momento, é tudo o que tenho.
Este quarto. Este e não outro. Tem particularidades minhas, isto é, tem particularidades que acredito serem da minha autoria. Chega. Não quero fazer o inventário. Não quero esforçar-me por descobrir uma realidade que, de qualquer maneira, voltará daqui a algum tempo.
Apenas este momento, então. Acordei. Sei que é assim, mas isso não me diz quase nada. Ainda não sei para que acordei ou porque acordei. Mas sabê-lo-ei, é apenas uma questão de tempo. Posso sempre esperar.
Instante a instante vou lembrando ou aprendendo pequeninas partes, que constroem o meu mundo. Das outras vezes também foi assim.
As minhas mãos. Gostava que a realidade chegasse ainda mais devagar. Agora já há coisas que eu sei, não estou na total ignorância de mim ou do mundo. E é pena. Basta-me olhar para as minhas mãos para certas realidades serem imediatamente conhecidas. E é pena.
Queria o acto da revelação por inteiro. Nada de conhecimentos prévios, a realidade ainda intacta à espera de ser descoberta. Isso faz-me lembrar a história da bela e triste Helena. Cantavam-na nas segadas. Como era?
«Porque não cantas Helena
à sombra dessa nogueira?»
«Como é que hei-de cantar
se o meu homem é morto na guerra?»
«Quanto deras tu Helena
a quem aqui to trouxera?»
«Dava-lhe uma carneirada
que trago naquela serra»
«Quanto deras tu Helena
a quem to aqui trouxera?»
«Dava-lhe as telhas do meu telhado
que são de ouro e marfim»
«Quanto deras tu Helena
a quem to aqui trouxera?»
Como é que era o resto? Ah! ela dizia que já não tinha mais para dar.
«Dá-me então as tuas filhas»
«As minhas filhas não tas posso dar
que me custaram a criar»
Claro que o desconhecido era o marido que julgavam perdido. E depois viveram felizes para sempre. Mas vês, Senhor, ele antes de se dar a conhecer interrogou-a. Obrigou-a a responder à charada e mostrou-se apenas quando ela respondeu a tudo, como era mister que respondesse. Talvez seja sempre assim. Talvez Tu, Senhor, também só Te reveles quando nós aprendermos as respostas certas para a charada da vida que nos dás.
Não importa. Outra das da segada.
«Apeia-te ó cavaleiro
que te quero dar de merendar
tenho vinho de há sete anos
quero-to dar a provar...»
Ouviste, Senhor? Sem enigmas e sem necessidade de conhecimentos iniciáticos. Apenas boa vontade. Sim, apenas boa vontade...
Que tempo maravilhoso aquele, Senhor. Ouviam-se cantigas por toda a parte...
Mas tudo isso já acabou há muito tempo. Agora parece que mais ninguém tem prazer nos trabalhos do campo. Que estranho mundo este!...

Erva-de-São-Roberto, salva e anis. Mas hoje não, apanho-as amanhã. Amanhã é outro dia. Hoje quero que o bocadinho que falta para eu voltar para casa se gaste depressa, muito depressa.
Estamos outra vez no outono, como eu gosto deste tempo que enche as árvores de folhas de muitas cores. Daqui a uns dias será a época das sementeiras, por todo o lado regatos de água da chuva e o cheiro a terra lavrada de fresco; agora ainda a apanha das uvas e o cheiro do mosto no lagar. A avó diz que este é um tempo bom, que devemos agradecê-lo e pedir boas colheitas para o novo ano. Quem me dera saber tantas coisas como a avó sabe. No outro dia disse-lhe que quando crescesse queria saber tudo o que ela sabe e ser ainda assim como as feiticeiras da Torca, ela riu-se de mim e disse-me que se eu continuasse para sempre criança talvez as feiticeiras me viessem buscar. Foi isso que ela disse mas eu não sei se entendi. Claro que eu vou crescer e deixar de ser criança, até acho que já não sou. Mas sei muito bem que gostava que as feiticeiras da Torca me viessem buscar e poder ser também eu uma senhora da magia e dos sonhos, como diz a avó.
Ai se a mãe me ouvisse dizer isto!...
Mas não importa, agora nada disso importa. Agora apenas preciso que o dia acabe para ir pra casa. Aqui é tão longe, tão longe...

Tenho uma cama de ferro pintada de branco e um colchão com uma cova no meio. Às vezes há reflexos de luzes que se estendem pelas paredes e pelo tecto do quarto. Outras vezes há escuridão. E sempre o silêncio, mas apenas fora de mim.
Será manhã quando ela entrar neste quarto com uma caneca de leite com café, bem quente e doce. E eu que tanto ansiei pelo dia terei o dia. Mas ainda a tarde não terá chegado a meio e já os meus pensamentos estarão voltados para a noite.
É assim, como poderia não ser.
Agora, Senhor, vou fechar os meus olhos, vou deixar o meu corpo enterrar-se ainda mais no colchão e vou esquecer-me. Esquecer-me de mim. Mas, Senhor, ainda posso contar-Te histórias, enquanto o sono não vier nem a vontade mudar. Vou contar- -Te histórias de coisas inventadas.
Era uma vez um lavrador que andava a lavrar um campo com uma junta de bois. Nisto chegou um lobo que lhe disse: «Lavrador, vou-te comer os bois!». Ao que o lavrador retorquiu: «Ai! Lobo, não comas os meus bois. Não vês que são o meu sustento?». Mas o lobo insistiu que sim, que os comeria. Então o lavrador, não vendo outra solução, pediu-lhe para lhe deixar, pelo menos, acabar de lavrar o campo. O lobo consentiu e, enquanto esperava que chegasse a altura de comer os bois, foi-se deitar junto ao carro do lavrador.
Foi então que... que o quê? Ah! Que chegou uma raposa. Pois, então a raposa, vendo o lobo a dormir junto ao carro de bois, aproximou-se do lavrador e perguntou-lhe o que fazia ali aquele lobo adormecido. Ao que o lavrador respondeu: «Ai! Nem me digas nada, que a minha vida está desgraçada. Aquele lobo, dizes tu? Aquele lobo está deitado a dormir a sesta, enquanto espera que eu acabe de lavrar este campo para comer os meus bois.». Admirada a raposa retorquiu: «E tu não fazes nada?». «Que queres tu que eu faça?» resmungou o lavrador. Então a raposa que era matreira, como todas as raposas são, esfregou as patas dianteiras e com os olhinhos a brilhar perguntou ao lavrador quanto é que lhe dava se ela o livrasse do lobo. «Meia-duzia de frangos bem gordos e tenros!». Mas a raposa quis três sacos cheios. Acabaram por acordar num saco de frangos e o galo. E em pezinhos de lã a raposa desapareceu.
Estava o lavrador quase a acabar de lavrar o campo, quando ouviu uma voz bem forte gritar-lhe lá do meio do monte: «Ó lavrador então que tal vai a lavra?... Hoje vim cá para estas bandas. Sabes, ando à caça de um lobo que costuma andar por estes lados. Tu, por acaso, não o viste?». Entretanto, o lobo, que tinha acordado com o vozeirão, começou a tremer de medo. E muito baixinho disse ao lavrador: «Tu diz-lhe que não, que não viste nada.». «Eu cá não vi nada, não senhor!». «Então, lavrador, que é isso que tens aí junto ao carro?». «Diz-lhe que é um tronco», segredou o lobo. «É um tronco». «Se é um tronco, porque é que não o deitas ao carro?». «Depressa, depressa, põe-me no carro». «Ó lavrador, se é um tronco porque é que não o apertas com essa corda?». «Tu faz de conta que me apertas, mas não me apertes!» rosnou o lobo, mas o lavrador apertou-o bem apertado. E a raposa impiedosa, continuou «Ó lavrador, se é um tronco porque é que não lhe espetas o machado que aí tens?». «Tu faz de conta que me espetas, mas não me espetes» ainda pedinchou o lobo. Mas o lavrador enterrou-lhe o machado na garganta, sem sequer hesitar. E assim acabou o lobo mau. Mas ainda não é o fim. Desceu, então, do monte a raposa trazendo, preso pelos dentes, um grande funil. Ainda antes de chegar ao pé do lavrador, largou o funil e começou com a cantilena: «E agora os meus franguinhos, os meus franguinhos...». O lavrador disse-lhe que esperasse um bocadinho, que ele ia buscar os frangos. Quando a raposa o viu com um saco numa mão e um grande galo na outra, mal cabia em si de contente. Correu pró lavrador, que lhe entregou logo o galo, deixando-a enterrar-lhe os dentes, mas nem sequer teve tempo de o comer -- o lavrador abriu o saco e saíram de lá quatro cães esfaimados. E a raposa correu a bom correr, enquanto o lavrador ria a bandeiras soltas.
A raposa fez fintas e manhas e conseguiu fugir mais do que os cães. Mas, por fim, quando já julgava estar a salvo, meteu-se num tremoçal e foi um ver se te avias outra vez, o longo rabo da raposa batia nas varas secas provocando uma chuva de tremoços, que lhe dificultava o andamento. Mas isso ainda não foi o pior, o pior foi o tremendo barulho que tudo aquilo causou. Tanto barulho que vieram, outra vez, os cães e apanharam a raposa.
Moral da história: nem em nós próprios podemos confiar.

Por favor, por favor Nossa Senhora da Serra, fazei com eles me levem à romaria no domingo que vem. Quero ir na procissão ao lado da mãe e cantar com ela canções de igreja. A avó decerto não vai, ela não gosta nada dessas coisas, diz que é sempre o mesmo: canseiras e muito pó. Mas eu quero ir, não me importo com a poeira nem com o cansaço, eu gosto de ir. Gosto de estar sentada nas fragas a merendar, gosto dos bolos que a mãe me compra depois, gosto de ver os homens jogarem ao fito e gosto de ver os pauliteiros, gosto de arrancar bocados de hera e flores aos andores já meios desfeitos, gosto de correr por todo o lado, gosto de ver as roupas domingueiras e os aventais cheios de folhos e com muitas cores, e os lenços de chita atirados pra trás.
Depois vou ter com a mãe, que ainda há-de estar ajoelhada junto ao vosso altar, minha Nossa Senhora da Serra, e fico um bocadinho a ver todas aquelas velas a arderem, enquanto espero pela mãe.
Por favor, por favor! Fazei com que eu também vá.

Ninguém se vai lembrar de mim. Pela mais elementar das razões: já não há ninguém que possa lembrar-se de mim.
Ninguém se vai lembrar de mim. E toda a minha vida será tão insignificante quanto um grão de poeira arrastado pelo vento.
De resto, é assim com todos. Mas muitos ainda não sabem que é assim. Há até aqueles que acreditam na imortalidade. Mas Tu, Senhor, devias dizer-lhes que na Tua eternidade será tudo normalizado. Decerto não haverá lugar para aquelas pequeninas coisas de que todos nos esquecemos. Pequeninas coisas sem importância como o som imediatamente reconhecível dos passos de alguém, ou a tonalidade profunda da sua voz e o brilho dos seus olhos em certas alturas. Decerto, Senhor, também não guardarás aqueles acessos de loucura que nenhuma argumentação racional conseguia deter, mas que acabavam por passar. Nem as vontades irresistíveis ou a insensatez que levava a cometer velhos erros.
Diz-me, Senhor, para que nos queres tão iguais como ervilhas?
E a noite será para sempre. A noite ou o dia, tanto faz.
Ainda agora e também para sempre a revolta, em mim. Recuso o aconchego das contas de um terço, desfilando nas minhas mãos. Não quero o Teu estagnado Céu, nem a paralisia mental conseguida com os pai-nossos e as ave-marias.
Mas aceitarei a loucura. A loucura! Sim, com todas as suas visões apocalípticas.
Por quem deveria chamar agora?
Demónios, demónios... vinde a mim. Ouvis a minha voz invocando-vos, o meu chamamento nas trevas? Também eu serei três vezes maldita. Que digo eu? A quem importa a danação? Sim, quando o paraíso, que nunca será quente nem frio, se adivinha estéril de tão morno.
Três vezes louvarei a insanidade. Oh, Demência! Que outro nome melhor para demónios? A mim a loucura que faz esquecer o mundo e as coisas do mundo. A mim as alucinações que fazem viajar sobre florestas e lagos, ao luar, em corpos moldados por mãos sabedoras e recriados até ficarem perfeitos. A mim as ilusões que refazem imagens e conhecimentos de pessoas para sempre perdidas, que assim regressam e regressam e regressam.
Deuses e demónios. Que falar é este? Em tempos, escutei outros ensinamentos: «Amarás ao Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua mente» (Mateus 22, 37). Mas Tu, Senhor, nada mais me dás que o Teu eterno silêncio.
Silêncio! Mas sempre e só fora de mim. Que venha a loucura! E deuses e demónios. Multidões, pois então. Loucura. Loucura.
«Mas o que é louco segundo o mundo é que Deus escolheu para confundir os sábios; o que é fraco, segundo o mundo, é que Deus escolheu para confundir o que é forte.» (Coríntios 1, 27).
Senhor, para que poderiam servir as Tuas palavras?
Agora lembrei-me, assim de repente, de outra das tuas criancinhas. Cassandra de seu nome. Conheci-a num dos meus livros. Lembras-Te dela, Senhor, da terrível Cassandra? Ela era louca, sim. Mas que quereria aquela louca que ninguém conseguia calar? Parece-me que apenas julgou que a verdade era o seu destino. Vês, Senhor? Quanta vontade de um destino, quanta necessidade de algo mais, em quase todos nós. Cassandra, não era? O sorriso de desdém na boca dela e a sua voz trocista: «Cuidado com o que pedis aos deuses - porque eles podem conceder-vo-lo!». Não foi sempre assim a sua voz, mas sempre gritou a verdade. A verdade! Mas quem é que quer a verdade? E pagou o preço que lhe era exigido, repartindo-o por uma vida inteira de visões e demência, de mortes e choro, de ódios e revolta.
E agora a pergunta fulcral: porque é que Cassandra nunca se calou? Gostaria ela de ver as pessoas empalidecerem com as suas palavras? Quereria ela ser a terrível, aquela que amaldiçoava Troia ao anunciar a sua queda? Seria tudo aquilo excitante? Não, não e não! Cassandra não podia calar-se porque temia o fim, não o dos outros --- o seu. E os deuses deram-lhe a imortalidade ao profetizar a verdade e não sendo acreditada. Sabedores os deuses!
Mas que dizer desta imortalidade? Só isto: tão má como a das ervilhas.
E Tu, Senhor, apenas me dás o Teu eterno silêncio.
Está bem! Vou, então, contar-Te outra história. Assim, mesmo sendo o meu monólogo, ainda ouço alguma voz.
Era uma vez uma princesa que... Não! Histórias de princesas não, são demasiado construídas. Que tal mais uma de raposas? Hm! Era assim: um dia de manhãzinha, estava um galo a cantar em cima de um palheiro, quando chegou uma raposa que lhe disse: «Ó galo! Que contente estou por te encontrar, não sei se sabes mas o rei dos animais mandou editar uma ordem que diz que, de agora em diante, todos os animais são iguais. Olha, por acaso até a trago no bolso... desce pra´qui que eu mostro-ta. E depois vamos os dois festejar». Mas o galo, que era esperto, não foi em cantigas: «Cala-te lá ó raposa que eu bem sei o que tu queres. Procuras enganar-me com as tuas trapaças para ver se eu desço... para depois me comeres. Mais a mais, o nosso rei não pode ser assim tão estúpido. De que adiantaria dizer que somos iguais se tu continuasses a ser uma raposa e eu um galo? As nossas naturezas são diferentes. E enquanto estiver na tua natureza comer-me...».
Pronto! Não conto mais. De facto, o galináceo era esperto. Ou então conhecia aquela do primo dele... Bem, só o fim: e então enquanto os cães correm atrás da raposa, o galo grita lá do seu poleiro: «Ó raposa, mostra-lhe a ordem. Mostra-lhe a ordem!... ». E, de si para si, a raposa ainda resmunga: «Agora não tenho vagar...».
Também havia aquela do rei que se lembrou de ordenar ao sol que não nascesse...
Moralidades, sempre moralidades. Como a outra do homem que corre o mundo à procura de algo que, afinal, esteve sempre no quintal dele. É pena que o desgraçado só descubra isso quando já é demasiado tarde...

A minha cabana tem um nome. Bem sei que ninguém põe nomes às casas, mas que me importa? Eu cá acho que deviam pôr. A minha cabana chama-se Canto-da- Cotovia-Por-Trás-das-Estevas. Fui eu que lhe pus o nome e até foi fácil, porque foi assim que eu a descobri. Não apanhei a cotovia e já sabia que ia ser assim, não importava. Mas, porque Deus Nosso Senhor quis que a cotovia cantasse ali e eu fosse lá, encontrei, do outro lado da cortina de estevas, um tecto de granito e, em baixo, um comprido e estreito banco. Gostei logo dela, só tirei as ervas e algumas das estevas para poder ver os lameiros, em baixo. Agora tem no canto uma pequenina abertura que é a minha chaminé e, do outro lado, um sobreiro de cortiça grossa. Gosto muito dela, mas não é só por ser minha. Gosto dela porque é bonita e protege-me da chuva e do vento e porque, quando estou lá, posso olhar o vale e tudo à minha volta e sonhar de olhos abertos. E também gosto dela porque sei que a minha cabana, que se chama Canto-da-Cotovia-Por-Trás-das-Estevas, ouve-me sempre que eu lhe quero falar e vai estar lá sempre, à minha espera.

À noite danço o sabat numa clareira vermelha, com velhas e crianças. A frase acudiu à minha mente, vinda sei lá de que recanto. Não é minha, tenho a certeza.
Quando era criança entretinha-me a imaginar as feiticeiras da Torca. Místicas e mágicas... Talvez as feiticeiras não passem dos sonhos de crianças ou de velhas.
Sonhos, não é? E porque não?...
Viajo sobre florestas frondosas ou sobre lagos de águas cristalinas, na clarividência das noites de luar. Sob as Tuas asas a nudez do meu corpo de novo jovem, que é nave. E à minha volta, fazendo eco nas minhas células, os latidos primitivos e intemporais da noite.
Sou invisível e existo só para mim. Mesmo assim ainda sei que Tu, Senhor que estás nas alturas, estás sempre presente.
Vozes estranhas, dentro da minha mente, invocam-Te dizendo: «Pai nosso que estais no céu...». Mas também escuto outras vozes e sei que inventaram demónios que criaram o mal e as tentações, por ti. E para Ti ainda acendem fogueiras nas noites sem estrelas e chamam-Te com lábios mudos. Eu estou com eles quando o céu é de tempestade e a Tua voz ressoa com o trovão. Outras vezes, falam-Te na imponência de templos que erigiram para Ti. Eu escuto os seus cânticos gregorianos, mas nada digo. Acredito que preferes o som esotérico do rombo, onde o próprio trovão, ou talvez apenas o rugido do touro enfurecido, foi aprisionado. Sons repetidos na incomparável sacralidade da abóbada celeste, decorada com azuis intensos e brancos acinzentados.
Abassi, Abassi... outra das coisas que ocorreu à minha mente. Um dos Teus muitos nomes, não é Senhor? Mas, Senhor, que dizer quando a Tua divindade se caracteriza sempre pela infinitude, pela eternidade e pela inacessibilidade? Qualquer que seja o nome por que Te chamamos, sozinhos continuamos sempre.
E, agora, eu apenas chamo a morte.
Voltemos aos sonhos, Senhor.
Dentro de um vestido branco, aquele com uma fita cor de vinho que eu trouxe no meu regresso a estas paragens. Sim, dentro de um vestido branco a minha mocidade reencontrada. Bem sabes, Senhor, que este é um dos poucos inícios que ainda me atreveria a querer. Mas adiante...
Corro descalça num prado verdejante. Malmequeres. Tapeçarias de florinhas brancas e amarelas. E o vermelho intenso das papoilas. É manhã. Manhã? Que dia...
Agora a imagem nada mais é do que uma imagem, já não a sinto. Perdeu o movimento e o som, isolei-a de mim.
Agora eu estou, de novo, neste quarto e no mundo vazio à minha volta.
Havia uma perguntinha pertinente na origem disto. Ah! Já sei... que dia é hoje? Diz-me, Senhor, que dia é hoje? Que dia... Não sei porquê estou a lembrar-me de uma história acerca de uma noite de S. João. Ainda falta muito para, bem sei. A despropósito. Mas há quantos anos? De resto, eu só sei a tal história por ouvir contar. Não importa, era assim: ela era uma jovem bonita e inocente. Gostava muito dele e ele sabia-o. Hum! Mas se Tu também os conheceste... A Maria Emília, lembras-Te? Que bonita que ela era... quando fez de Santa Catarina, no auto da festa daquele ano, deslumbrou todos quantos a viram. Já dele, do Daniel, não se podia falar de beleza, mas... ora, ela lá sabia o que via nele. Gostava dele sim senhor e iam namoriscando à vista de todos. Quanto ao resto só no casamento, como mandavam as leis rígidas em que a educaram. Mas que ele era esperto, lá isso era. Lembras-Te, Senhor, do ardiloso estratagema que ele urdiu? Usou as crenças e a inocência dela, mas isso não o aprendeu com outro que não fosse o Teu padre, atrás de quem tanto andava.
Foi então numa noite de S. João. Dizia-se que... bem, já não me lembro. Era uma confusão qualquer que envolvia, entre outras coisas, nomes de rapazes em papéis dobrados. Para saber com qual deles se casaria, pois claro. Era o nome que estivesse no papel que se abrisse, absolutamente por ordem divina. Mas nisso a Maria Emília não estava sozinha. Foi uma amiga quem se lembrou do jogo, quem a levou a jogá-lo e, por último, quem, às escondidas, abriu o papel com o nome do Daniel, tal como tinha combinado com o próprio. E ela, a Maria Emília? Longe de pressentir a trapaça, ficou radiante e correu de manhãzinha a agradecer-Te a bondade. Sabes bem que foi assim, Senhor. Foi à saída da Tua casa que a tia Antónia da Estrada a encontrou. Lembras-Te, Senhor? Disse-me que ainda a alertara: «Ó rapariga e tu vais lá acreditar em tais candongas. Já a minha avó, que Deus tem, dizia que o sai da boca dos adivinhos e dos caloteiros só ao demo interessa». Se ao menos ela tivesse escutado, mas tal sorte não lhe concedeste. Bem sabes, Senhor, que a candonga em muito contribuiu para que ela lhe permitisse certos avanços. E, no fim, ele acabou por casar com uma moça rica, a sobrinha do Teu padre, que, de repente, se viu rejeitada por outro com quem andava e quis assegurar um casamento que a livrasse de falatórios.
E a Maria Emília ficou com um filho para criar, sozinha e no meio das maiores pobrezas conhecidas na aldeia. Acabou por morrer, quatro anos depois, de cansaço ou de desgosto. Ainda me lembro da voz dele dizendo com escárnio que ninguém morre de desgosto. Mentira. Morre-se sim, Senhor Deus, quando Tu deixas.

Quando eu crescer como é que será? Sei bem que vai ser muito diferente, porque é o que se diz. Mas como é ser muito diferente?...
Ontem disse ao meu irmãozito para se chegar prá frente no banco e ele perguntou- -me o que era prá frente. E eu ri, porque aquilo não tinha nada que saber... Bem sei que vou saber como vai ser e que vai ser muito diferente, mas agora ainda não sei. Mas também não importa, porque há certas coisas que eu até sei... sei que vou gostar sempre de andar descalça na erva macia e de correr com os meus cabelos ao vento.
Hei-de sempre subir a sítios muito altos e rir e gritar ao eco. Hei-de sempre gostar... sei lá! DE TUDO O QUE AGORA GOSTO!!!...

Queria correr na calçada, com os risos juvenis a acompanharem-me. Queria estar bem no topo do monte do Regueiral, no cimo da fraga mais alta. Queria ter asas e voar.

«O Senhor é o meu pastor nada me falta, em verdes prados me faz descansar e conduz-me às águas refrescantes...» já não me lembro do resto. A avó não se havia de importar, ela quer sempre que eu aprenda outras coisas. E eu aprendo, mas às vezes há certas coisas que eu não sei porque são como são...
«Na primeira lavra das sementeiras, deve-se sempre regar a charrua com água da chuva.»
A mim não me deixam lançar as sementes à terra, a avó diz que não posso porque ainda não sou verdadeiramente mulher.
«Semeia-se pela lua nova, mas só se devem colher os legumes e podar quando a lua está em quarto-minguante.» A avó diz-me muitas vezes que não se deve destruir uma coisa viva quando as forças do mundo estão em crescimento. Está bem, é assim porque é!...
Agora estamos em Outubro, a época das sementeiras. Também sei que é nesta altura que se plantam as fruteiras nas terras secas, e as mulheres fazem alcaparra da azeitona que vai caindo com o vento. O vento... é ele que nos diz que tempo há-de vir. Bem, também é preciso levar em conta o céu de estrelas nas frias noites de inverno. Ou as cores do pôr do sol. Mas é o vento, que vem dos quatro cantos do mundo, que anuncia chuva ou sol, frio ou calor. Agora, no Outono, o vento norte já traz tempo frio. Mas com o vento de nascente virá sempre tempo seco e sereno, só sendo frio e chuvoso quando o vento soprar de poente.
Em Novembro as noites são longas e nos serões, à lareira, contam-se histórias de animais que falam e de outros encantamentos. E as mulheres sempre fiando e tecendo.
É a época das castanhas, os mais novos juntam-se para ir prá serra, lá para Negreda e Alimonde, onde se demoram, às vezes, duas a três semanas.
E quase no fim do mês fazemos a festa de Santa Catarina, a nossa padroeira.

Chamavam-lhe fado a dois passos. Mas isso foi bem mais tarde, embora sempre tenham existido danças e cantares, por estes lados. Missa cantada e procissão pela manhã, e baile logo depois do jantar da festa. Jantar que era almoço. Já não sei porquê isto agora...
Os pensamentos sucedem-se uns aos outros, perdem-se ou regressam. A minha mente já não tem descanso. E nada daquilo que eu penso é importante, tudo acontece mais ou menos por acaso.
Tenho o passado que é lembrado e depois esquecido, para de novo ser relembrado. Às vezes perco a lucidez e as memórias, mas tudo acaba por voltar.
Que tristes dias, Senhor. Agora para saber a minha idade preciso pensar primeiro e, ainda, durante um certo tempo. Sou velha, tão velha que já nem eu sei quanto.
Porque não me deixas morrer?
Talvez ainda falte o derradeiro pensamento. Mas quais poderão ser as últimas palavras, dentro e fora de mim, que mereçam ser as últimas?
Não é ao passado, bem sei, que poderei ir buscar a resposta, a solução para o tão desejado silêncio. Muito menos ao futuro que, tivesse eu a idade que tivesse, não existiria para mim, condenado que estava pela minha revolta.
Resta-me o presente, que mais não é do que este instante. Isolado de memórias e de crenças, verdadeiras ou falsas. Liberto de pesares e de felicidades que também se perderam. O meu presente não é mais do que este instante dentro de mim, um momento do meu sentir. Do meu ser. Nada mais do que os meus insignificantes pensamentos.
Senhor, deixa-me reencontrar, uma última vez, a minha fé.
Que os meus pensamentos se voltem para Ti e só para Ti.
Eu já nada mais sou do que os meus pensamentos. Talvez tenha sido sempre só isso o que eu fui e o que o mundo foi para mim. Não importa, agora já nada disso importa.
Apenas a minha fé ainda e sempre é chamada...
Que o amor, a paz, a glória, a harmonia, a alegria e a beleza de Deus inundem a minha mente. Que na minha mente apenas seja reconhecido o que for de Deus.
Nos meus pensamentos já nada há que não seja de Deus. O passado foi esquecido e não mais será lembrado. Os meus pecados estão perdoados.
«Eu e o Pai somos um» (João 10, 30)

Em Janeiro apanha-se a ferranha e o nabal. Nas terras fortes fazem-se as primeiras lavouras do ano, para em Fevereiro ou Março plantar estacas de oliveiras, figueiras e bacelos. É também lá para Março que se lavram os olivais e adianta-se a poda das videiras. Começa a cava e a enxertia. E nas terras secas semeiam-se batatas temporãs e painço.
Em Abril faz-se a trasfega do vinho. Estrumam-se os canteiros e planta-se o renovo, as sementeiras da primavera.
É um tempo de alegria.

As tuas palavras, Senhor... «Porque este meu filho estava morto e reviveu, estava perdido e foi achado. E começaram a alegrar-se» (Lucas 15, 24)

Em Maio, nas terras fundas, semeiam-se batatas e milho, feijões e linho.
Enfeitam-se as portas e as varandas com giestas floridas, para celebrar o renascimento da vida. Lá pró fim do mês, os homens formam ranchos e vão começar as segadas na terra quente.
Em Junho são as mulheres quem trata das mondas e das regas. Apanham cidreira pelo S. João e deixam os fenos secar nos lameiros. E é preciso ter sempre cautela com o tempo. Falta de vento e calor excessivo é sempre sinal de tempestade, mas também as mudanças frequentes dos ventos são prenúncios de trovoadas e chuvas fortes.
Em Julho terminam as ceifas e recolhem os fenos.
Em Agosto apanham as batatas, o linho e os legumes das terras de regadio. E todos vão aos montes buscar cargas de lenha, pró inverno.

E, todo ano, há alegria nos olhares das gentes que trazem no rosto a história do que viveram.

Em setembro fazem as vindimas, apanham maçãs e abóboras, e secam figos.

Eu vou com a avó para os montes à procura de anis e de salva, das ervas de S. Roberto e de S. Guilherme, da malva branca e do hipericão, da macela e erva-da-trindade.
Os homens semeiam nabal nas terras húmidas.
É um tempo de agradecimento e de preces para o novo ano.

E Tu, Senhor, estás sempre connosco, nos lugares sagrados de todos os dias.

E eu aprecio tudo... Gosto das casas de granito por caiar, dos degraus íngremes e estreitos, dos vasos de malvas nas sacadas, dos escanos e das fogueiras que se acendem com o cair da noite, ao tocar das trindades, e que fazem esquecer todas as trevas.
Há sempre risos e cantares e histórias de outros tempos.
Eu deito a cabeça no colo da mãe e tudo é perfeito.

«... e chama as coisas que ainda não são, como se já fossem.» (Romanos 4, 17)
Uma voz dentro de mim, vinda de muito longe, traz-me de novo o que eu perdi no mundo dos adultos.
Uma voz dentro de mim quebra o Teu silêncio, Senhor.

Agradecemos este dia e todos os que hão-de vir. Que a nossa casa seja para sempre a casa de Deus.
Vê, mãe, ainda me lembro.

Depois, na minha nova família, também haverá pessoas que eu agora ainda não conheço. Mas, Senhor, teremos os mesmos vasos de malvas nas sacadas, os velhos escanos de castanho junto à lareira e as eternas mantas de lã branca.
Estaremos todos juntos e seremos felizes.
E o tempo há-de ser uma brincadeira.



Fim